A montanha mágica

Até que ponto jogadores abandonam suas zonas de conforto em busca de melhoras de rendimento realmente significativas? É preciso saber deixar "a montanha mágica" para trás para alcançar os objetivos


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Seria difícil dizer com precisão quantos jovens, de diferentes nações, buscam o estrelato no tênis. Atraídos pelas enormes quantias monetárias, ou simplesmente pelos holofotes da fama e da glória que retratam o glamour do circuito, cresce cada vez mais o número de adolescentes que se dedicam exclusivamente ao tênis. Seduzidos pelo sucesso de seus ídolos, muitos abdicam de uma vida convencional para embrenhar-se em rotinas massivas de treinamento e torneios. Isso nada mais é do que uma reação natural aos crescentes investimentos em mídia, exposição e produção de eventos e jogadores, que ocorreram na última década. Pessoas tornaram-se marcas, milhões viraram bilhões, e o silêncio protocolar das partidas de tênis transformou-se em verdadeiros shows de luzes e som. Poderoso e empolgante, o cenário do tênis se revela cada vez mais atrativo. Não só para telespectadores e torcedores, mas também preenchendo sonhos e ambições de uma legião de juvenis que se acotovelam por um lugar ao sol.

Não faltam exemplos de insucesso de vários jogadores que estavam cercados de amplas variáveis favoráveis

O Brasil não foge à regra. Desde os triunfos de Gustavo Kuerten, é comum encontrar jovens tenistas se dedicando em período integral, executando programas completos de treinamento amparado por treinadores, preparadores físicos, nutricionistas e psicólogos. Muitos pais também se envolvem no processo, muitas vezes mudando de cidade, abdicando de empregos ou redirecionando os planos econômicos familiares para poder dar suporte às atividades do filho. É preciso ter muita coragem para tomar decisões desta natureza. É realmente louvável ver o enfrentamento do caminho duro e incerto rumo ao topo no tênis de elite por parte destes tenistas.

No entanto, estar imbuído neste processo não é garantia de sucesso. Por melhor que seja a estrutura, por mais competentes que sejam os integrantes do staff do treinamento, ou por mais talentoso que o garoto possa ser, ainda assim não se pode ter certeza do êxito. Não faltam exemplos de insucesso de vários jogadores que estavam cercados de amplas variáveis favoráveis. Em detrimento, há tantos outros tenistas que atingiram níveis de excelência vindos de situações precárias e muitas vezes opositivas. Qual seria o porquê de tantas carreiras seguirem rumos inesperados, imunes aos prospectos, projeções e tendências que a elas são associados?

Desejo x Necessidade

O cerne desta questão está em entender a sutil diferença entre desejo e necessidade. Compreender o aspecto “desejo” não requer grandes explicações. É evidente que todos “querem” ser Sharapovas ou Federers. Eu também me enquadro neste grupo, sem a menor restrição. Já o outro elemento não é de entendimento tão óbvio. Necessitar vencer, precisar melhorar, é o verdadeiro pilar do sucesso. A tal “necessidade” conserva sua pluralidade no que tange suas origens e motivos, mas dois eixos principais podem ser traçados na tarefa de entendê-la.

A vitória pela sob revivência

O primeiro é a condição que o tenista se encontra, que muitas vezes é desfavorável em todos os sentidos, colocando a vitória como único meio de sobrevivência e continuidade na modalidade. É preciso vencer para pagar despesas e manter seus patrocínios, ou, em outros casos, alimentar a família. Não faltam exemplos de jogadores que vieram de classes pouco favorecidas economicamente.

Podemos ainda olhar para outros esportes. Como explicar o vôlei de Cuba, os corredores quenianos e os incríveis velocistas jamaicanos? Necessidade. Um estudo recente feito na Jamaica para entender o desempenho desses atletas não encontrou nenhum sistema de treinamento inovador, apenas revelou uma conjunção de condições adversas, dentro e fora do estádio. Num local como aquele, ser mais rápido na pista significa, primeiramente, sobreviver. O segundo eixo é intrínseco à personalidade e ao caráter do tenista. Alguns jogadores são tão competitivos e obcecados por vencer e atingir suas metas que criam a necessidade na forma de interpretar a competição. Mas, independente de ser interno ou externo, “necessidade” é um componente bem mais poderoso e menos comum que o mero desejo.

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Necessidade e desejo andam juntos ?

Esclarecidos estes elementos, fica claro que apenas boas estruturas, programas multidisciplinares e talento esportivo não são capazes de compor o palco da vitória. Surge o interessante paradoxo entre desejo e necessidade. Quem tem necessidade tem desejo, mas nem sempre quem tem desejo tem necessidade. Devemos estar sempre alerta a estas proporções quando compomos uma formulação que pretende ser ganhadora, tanto nas dimensões inerentes a treinadores quanto naquelas ocupadas por pais e tenistas. A ausência de necessidades gera as zonas de conforto, o maior obstáculo para o desenvolvimento de qualquer pessoa em qualquer nível.

Parábola

“A Montanha Mágica”, obra de Thomas Mann, prêmio Nobel de literatura, aborda esta temática com encantadora sutileza. Deixando sua vida habitual para passar três meses numa estância de recuperação para tuberculose situada nos Alpes, o protagonista acaba permanecendo sete anos naquele local. A novela se estende demoradamente por mais de 800 páginas, como se não quisesse ter um fim, assim como seu personagem reluta em abandonar seu refúgio. A vida na montanha tinha seus encantos, boa comida, tempo livre, despreocupação entre outros elementos mágicos que encorajavam a fuga de si mesmo, da vida e de suas responsabilidades e desafio. Era difícil para seus habitantes encontrar razões e motivos para abandoná-la.

A “montanha mágica” no tênis

O tênis resguarda suas dificuldades que não requer muitas apresentações. No entanto, não pode passar despercebida “La dolce vita” que permeia esta atividade. Livre das provas e das pesadas exigências de um vestibular, tenistas juvenis podem viajar, muitas vezes para o exterior, frequentam clubes e academias de alto padrão em torneios aconchegantes. Apesar da amplamente aceita verdade que é uma vida de sacrifícios, há espaço para o questionamento do teor desses sacrifícios.

São todos que rigorosamente abdicam da vida social noturna para realizar uma boa recuperação de torneios e treinamentos quando isso se faz necessário? Respeitam as horas de sono exigidas por um programa integral, ou aventuram-se pela noite em sites de relacionamento? Seguem o plano nutricional que lhes foram dados, ou comem o que sentem vontade? Realmente se aplicam nos treinamentos, num processo de superação contínua, passando por cima de dores e limites? Lutam cada jogo, tiram o máximo de cada situação e fazem tudo com a máxima intensidade e atenção?

Esperamos que sim, mas é redundante dizer que são poucos os que conseguem esse grau de dedicação. Ainda é maioria o contingente de jogadores que trazem restrições à entrega necessária para se agir de forma profissional como tenista. Se formos tolerantes e negligentes, corremos o risco de cedermos valiosos espaços nas atividades relativas ao treinamento, que dificilmente serão recuperados. Infelizmente, é uma atividade de 24 horas, ou pelo menos deveria ser. Quando jogadores incorporam maus hábitos, delimitando uma impenetrável zona de conforto, acabam definindo sua própria limitação.

A montanha dos treinadores

Porém não são apenas os tenistas que se refugiam na montanha mágica. Lamentavelmente, pais e treinadores aportam sua conivência a esse processo. E não é difícil entender o porquê. Treinadores e profissionais envolvidos nos programas são pessoas pagas. Obtém sua sobrevivência daquela atividade. Fazem seu papel em orientar e exigir, mas são limitados. E o limite é imposto pelo próprio jogador. Por mais que se conscientize, ao tenista em questão é reservado o livre arbítrio. Cabe a ele a última palavra, a decisão final. Caso ele haja de maneira não profissional, o tutor pode utilizar amplas abordagens, utilizar seu carisma e influência para criar uma conduta. Mas sempre será o jogador o responsável pela qualidade da aplicação da filosofia do treinador. Caso exista discrepância de opiniões e comportamentos, pontos de tensão passam a existir.

Neste momento há três condutas que podem ser adotadas: o treinador não aceita a postura do jogador e há uma ruptura; este tenta todas as alternativas cedendo e se resignando no final do processo; e, finalmente, os casos em que o profissional em questão se molda ao jogador evitando qualquer tipo de divergência. Infelizmente o último procedimento ocorre com frequência, pois é o mais cômodo e mais rentável. Técnicos não são imunes a adquirirem zonas de conforto. É, antes de tudo, uma característica humana, tão bem assinalada pela obra de Mann.

Quanto maiores as necessidades e menor a estagnação, melhores as chances de vitória. Não devemos esquecer que a cada degrau que subimos rumo ao topo, mais difícil se torna a escalada

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A montanha dos pais

Em relação aos pais, o processo se repete. Discussões por maior empenho ou melhor conduta são corriqueiras na beira da quadra ou nos bastidores familiares. No entanto, muitos pais já deixaram de ter suas próprias vidas para viver a carreira do filho. Uma relação que era para ter caráter de apoio, passa a ser de dependência, com forte teor emocional. Quando um pai esquece seu nome e se apresenta como “pai do jogador tal”, ele já é refém da situação e perdeu as ferramentas de cobrança. Os tenistas sabem disso, muitas vezes até de forma inocente, tendo consciência de que independentemente do que fizerem, os pais continuarão apoiando sua carreira.

Jogadores, treinadores e pais podem ficar asilados em suas próprias montanhas mágicas, o tênis sempre foi o reflexo da vida. A combinação de zonas de conforto na somatória dessas relações impede a completude do desenvolvimento de qualquer jogador. A sobreposição de sonhos e desejos mais subtraem do que somam nesses casos e a ausência de necessidade é fatal. Cada uma das partes deve ter claro linhas de necessidade para que o processo seja produtivo.

Três tipos de pessoas

Certa vez, em um congresso da ITF, tive a oportunidade de ouvir um palestrante cadeirante. Ele havia conquistado várias medalhas olímpicas e o que mais chamava a atenção era que pertenciam a diferentes modalidades. Para minha surpresa, ele agradecia continuamente o acidente que o levou à sua limitação física. Segundo ele, haviam três tipos de pessoas: “Confort people”, aquelas atreladas a sólidas zonas de conforto que apenas passavam pela vida. “Ego people”, formada por aqueles que trabalhavam arduamente para si próprios, não eram estagnados, mas careciam de sensibilidade e humanidade. E, finalmente, “Growing people”. Este último grupo, importava- se em viver a vida plenamente em todas as suas extensões, eram ávidos por experimentar, criar e superar. Mantinham sua existência em contínuo movimento.

Ele declarou que se enquadrava nesse grupo, mas que isso só ocorreu após se tornar um cadeirante. Mostrando fotos de si mesmo antes do acidente, percebemos que se tratava de uma pessoa obesa. Foi uma surpreendente revelação, pois, após tantas conquistas, era fácil imaginar que aquele homem viesse do meio esportivo. Segundo ele, a tragédia o liberou de suas zonas de conforto para uma vida plena, repleta de realizações. É redundante apontar o elemento necessidade nesse episódio como alavanca das mudanças.

O sucesso como inimigo do sucesso

É crucial avaliar e analisar o quanto nossas vidas estão definidas por zonas de conforto. Da mesma forma, devemos estender esse raciocínio aos vários elementos que confeccionam a carreira de um jogador, além dele próprio. Quanto maiores forem as necessidades e menor a estagnação, melhores serão as chances de vitória. Não devemos esquecer que a cada degrau que subimos rumo ao topo, mais difícil se torna a escalada. Não só pela melhor qualidade de nossos concorrentes, mas também pelo fato de que as próprias consequências do triunfo tendem a anular os elementos que o causaram. Nas palavras do enxadrista campeão mundial, Gary Kasparov: “O sucesso é o maior inimigo do sucesso”.

Este paradoxo é compreendido lembrando que, ao se alcançar o objeto de conquista, esgota-se a necessidade por aquele elemento. Se não houver uma reciclagem interna de interesses, o próximo desempenho será afetado. No tênis, esta questão é tão marcante que ocorre inclusive internamente nos games e sets. Quem já não se sentiu imbatível após ganhar três pontos seguidos de forma incontestável, sendo surpreendido por um erro gritante apenas por não apresentar os mesmos níveis de concentração?

Vencer é uma arte, mas continuar vencendo é ser artista. Repetindo a citação de do escritor britânico Joseph Rudyard Kippling: “Se puderes enfrentar o triunfo e o desastre e tratar estes dois impostores como iguais, será um campeão”. Nesta epígrafe, o autor alerta aos perigos da vitória e encoraja nos momentos de derrota. Fica claro que tanto quando se perde, como quando se ganha, um jogador passa por desafios. Não há trégua. Enquanto jovens perseguem seus sonhos, muitas vezes alheios às nuances do caminho, análise e questionamento serão sempre os melhores aliados. Muitos são os desvios que levam a tantas montanhas. Muitas são mágicas, mas em apenas uma delas está o cume da vitória.

Elson Longo

Publicado em 22 de Março de 2010 às 14:46


Comportamento

Artigo publicado nesta revista