Especial Guga
Em sua recém lançada biografia, Gustavo Kuerten conta detalhes de sua carreira que todos pensam conhecer, mas que são ainda mais reveladores quando vistos sob a perspectiva de quem viveu tudo aquilo dentro de quadra
UMA FILA QUILOMÉTRICA SE formava em torno do prédio do Conjunto Nacional na avenida Paulista, em São Paulo. O que estaria acontecendo? Noite de autógrafos do livro “Guga, um brasileiro”, a biografia de Gustavo Kuerten, ex-número um do mundo, tricampeão de Roland Garros, o maior ídolo do tênis brasileiro nas últimas décadas. Ou seja, era esperado que uma multidão se aglomerasse no dia 10 de setembro, lançamento da obra.
Coincidentemente, o evento ocorreu no dia do 38º aniversário de Guga. Então, entre um cumprimento e outro, milhares de autógrafos e fotos, Kuerten sorriu, agradeceu, conversou com os fãs como se ainda estivesse no auge da forma e não longe das quadras desde 2008, quando se aposentou.
Ao explicar a opção pelo título de sua biografia, ele contou que queria mostrar sua essência que, no fundo, não é diferente de qualquer pessoa, qualquer brasileiro. A obra é uma narrativa envolvente e muito bem escrita em um trabalho primoroso de Luís Colombini. Nela, o leitor passeia pelas grandes conquistas de Guga, vitórias e fatos que provavelmente já conhece por ter visto na televisão ao vivo enquanto acompanhava a carreira do ídolo, mas com aquele toque pessoal da visão de quem está vivendo tudo aquilo, as angústias, os pensamentos, as emoções. É como reviver cada jogo, mas de um ponto de vista privilegiado e, muitas vezes, surpreendente. Além disso, a trama que perpassa os grandes momentos de Kuerten, também retoma suas origens, com fatos desconhecidos pela maioria do público, mesmo por quem o viu de perto.
Um dos momentos mais célebres da carreira de Guga é o tricampeonato de Roland Garros em 2001, a conquista que ficou marcada pelo coração desenhado na quadra central, a consagração total do brasileiro diante da torcida, não somente a brasileira e francesa, mas de todo o mundo. No entanto, aquele mesmo coração já tinha sido rascunhado dias atrás, no jogo em que o Manézinho aponta como o mais relevante daquela vitoriosa campanha e que seria determinante para o seu terceiro título em Paris.
Assim, nas próximas páginas, reproduzimos um trecho do capítulo “Tri”, em que Guga narra a incrível vitória sobre o norte-americano Michael Russel:
Mandei tudo às favas e, para descontar a raiva, joguei o ponto de qualquer jeito
SABIA POUCO SOBRE O AMERICANO Michael Russell, o 122o do ranking. Entrei em quadra despreocupado, sem antever problemas. Era o primeiro jogo do dia, às onze da manhã, meio difícil para engatar. O vento castigava, mas tudo bem. Com ou sem adversidade, as oitavas eram parte da rotina, uma etapa necessária para cumprir tabela e seguir em frente. Mas o bicho pegou.
No terceiro game do primeiro set, Russel quebrou meu saque. Tudo bem, normal, daqui a pouco me encontro. Mas nada do que eu fazia dava certo. Quando conseguia uma bola na veia, ele me passava a rasteira. Eu ficava esperando a chance de dar o troco e, se aparecia, desperdiçava, a frustração crescendo. Tentava de tudo, não adiantava. Eu era o número 1, jogando praticamente em casa, na terra da magia, com tudo a meu favor, e o cara ganhou de mim o primeiro set por 6-3.
No final do segundo set, quando ele ganhou de novo, criei um monstro na cabeça e a frustração virou vergonha. Dois a zero para ele? Pô, que é isso? Como assim?
No terceiro set, quando Russell abriu dois games de vantagem, me senti como o dono da casa que tentou mostrar quem mandava ali, mas o gaiato, depois de entrar pela porta dos fundos, abriu geladeira, ligou a TV, sentou no sofá e pôs os pés em cima da mesa da sala. Eu já me via dando entrevista coletiva, lamentando que não tinha dado e querendo ir embora dali o mais rapidamente possível.
E aí Russell fez 5-2. Nessa hora, já me vi com o cartão de embarque na mão. Na minha cabeça, estava certo de que a partida já era. Minha única dúvida era qual seria o melhor buraco para me esconder. Se eu perdesse aquela, teria sido a derrota mais difícil da minha carreira, a mais doída, a que eu estaria tentando esquecer até hoje.
Desesperançado, ganhei o game seguinte e a partida ficou 5-3 para ele no terceiro set. Nada que mudasse o cenário. Russell sacou e o game ficou em 40/30, o match point na mão dele. A essa altura, eu não me importava mais com o que ia acontecer. Como no jogo contra Medvedev no Roland Garros de 1997, mandei tudo às favas e, para descontar a raiva, joguei o ponto de qualquer jeito. Num rali de mais de vinte bolas, eu batendo cada vez mais forte, acertei duas vezes a linha, e não é que ganhei o ponto? Empatei, 40 iguais.
Era impossível eu ficar mais encurralado do que no cenário anterior. E, se eu entendia um pouco daquele negócio, era bem provável que Russell estivesse se apavorando com a minha ressurreição. Se era assim, vamos lá. E então passei a construir uma certeza de que o jogo seria meu. Só o grau de confiança que eu guardava em mim desde o início do torneio justificaria tamanha convicção naquela hora.
Voltei à vida em grande estilo. Vantagem minha. No ponto seguinte, repeti a dose. Ainda estava 5-4 para Russell no terceiro set, faltando só mais um game para ele liquidar a fatura, mas a essa altura eu já não tinha a menor dúvida de que eu ia ganhar.
Se eu perdesse aquela, teria sido a derrota mais difícil da minha carreira, a mais doída, a que eu estaria tentando esquecer até hoje
Na minha cabeça, aquele era um novo jogo. Os deuses de Roland Garros eram poderosos e estavam do meu lado. Se Russell não tinha agarrado sua chance, ele que se lascasse. Se não aproveitara até agora, não ia aproveitar mais. A chance agora era minha. Pouco antes de sacar, olhei direto para Russell. Parecia que ele estava concordando com tudo o que eu estava pensando. Empatei, fiz 5-5, depois 6-5, ele igualou. Fomos para o tie-break, minha fama jogando contra, ele se agarrando a isso para liquidar a partida. Mas, se ele não tinha entendido a mensagem antes, lá ia a trombeta final. Venci o tie-break.
O estádio veio abaixo. Sentado no banco, bebendo água, Russell sabia que o jogo tinha acabado ali. O olhar do cara era um negócio indizível, ele não podia acreditar na chance que tinha perdido. Em 1997, a zebra era eu. Mas, contra Muster, Kafelnikov, Medvedev, Bruguera, os parisienses me apoiaram com o seu “Allez, Gugá!”. Agora, contra o americano, se os franceses só gostassem de zebra, essa seria a hora de gritar “Allez, Russéll!”. Mas ninguém falou isso. Todo mundo continuava me incentivando, Gu-gá, Gu-gá, allez, Gu-gá, Gu-gá, apesar da enrascada em que tinha me metido. Essa é mais uma das razões por que sempre levarei Roland Garros no meu coração.
Aí, com toda aquela empolgação, aquele carinho da torcida, é que não tinha mais jeito mesmo. O jogo virou de cabeça para cima. A mandracaria de Russell gorou. E até minhas bolas tortas entravam.
Num impulso, sem pensar em mais nada, peguei a raquete e voltei à quadra. Devagar, fui riscando o saibro...
Quando eu acertava na linha e fazia minhas melhores jogadas, a arquibancada tremia com os gritos de incentivo. Entrei em sintonia com a plateia, comecei ali a viver um dos meus momentos mais fabulosos no tênis, desempenhando como poucas vezes na vida.
Mesmo que ainda continuasse atrás no placar, eu nem lembrava mais disso. Só queria jogar cada vez melhor, mais bonito, para merecer todo aquele apoio, que não parava de crescer, me sentindo como se estivesse sendo carregado nos braços do povo. Ganhei o quarto set por 6-3. Empatei a partida, mas os números não tinham mais significado, só a certeza da vitória e o calor da torcida existiam, era apenas uma questão de tempo para aquilo acabar a meu favor, sem a menor margem para dúvida.
No set derradeiro, aniquilei Russell, mesmo com o cara não se entregando em nenhum momento. Fechei o quinto com 6-1, encerrando uma das partidas mais dramáticas da minha carreira, sem dúvida a mais emocionante. Meu primeiro impulso foi me jogar nos braços da torcida, mas faltava cumprir as convenções. Andei até a rede, cumprimentei Russell, depois o juiz e só então dei vazão ao coração. Numa cena raríssima, chorei ao ganhar um jogo. Eram lágrimas discretas, que não estavam visíveis a todos, mas que expressavam quanto eu estava arrebatado pela emoção, pelo sufoco, por ter virado um jogo totalmente perdido, pela superação, pela vibração, pela entrega, pelo amor da torcida.
Cheguei ao banco com o corpo explodindo de felicidade e a alma embargada, agradecendo aos céus, ao meu pai, sentindo uma necessidade descomunal de retribuir à plateia todo aquele estímulo e carinho que ela me deu. Mas como agradecer devidamente? Como passar aquela emoção? Era impossível transformar aquilo em palavras. Num impulso, sem pensar em mais nada, peguei a raquete e voltei à quadra.
Devagar, fui riscando o saibro. Fiz um semicírculo, uma curva, depois fui indo para o fundo, então para cima de novo, descrevi uma parábola, fui baixando em outro semicírculo, outra curva, até o desenho se unir ao ponto em que tinha começado. Visto de perto, eram só rabiscos no saibro. Mas, do ponto de vista da plateia, a mensagem estava clara. Eu tinha desenhado um enorme coração, na tentativa de que a imagem universal do amor e da paixão pudesse transmitir aos franceses o que nenhuma palavra minha conseguiria.
Quando terminei o desenho, deitei no meio dele. Fiquei estirado ali, com as pernas abertas, as meias e os tênis recobertos de saibro, o calção azul-marinho, da mesma cor da bandana, as costas da camiseta branca suada se impregnando de mais saibro. A plateia explodiu numa salva de palmas, com 12 mil pessoas de pé gritando meu nome. Espremi os olhos e, deitado ali diante de todos, chorei de novo, me sentindo o cara mais feliz do mundo.
O primeiro ponto na ATP, chegar aos 100 do mundo, o top ten, o número 1, nada se comparava em emoção àquela catarse. Duas horas antes, eu era dado como morto. Agora que os céus tinham me dado uma segunda vida, ninguém mais me tirava o título. No momento em que me levantei, coberto de saibro, tinha plena certeza de que seria campeão mais uma vez em Roland Garros.
Publicado em 26 de Setembro de 2014 às 00:00
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