Um dos fatos mais importantes de 2009 foi o retorno de uma antiga questão: a colisão entre tênis e política
Tsonga se tornou o primeiro negro |
Em 16 de novembro, 1973, Arthur Ashe voou de Londres para Johanesburgo para jogar o Aberto da África do Sul. Trinta e seis anos depois, este pode não soar como um acontecimento marcante, afinal, Ashe ganhava a vida disputando torneios pelo mundo. Não eram, contudo, todos os eventos que permitiam sua presença. Em 1973, a África do Sul vivia sob a égide do Apartheid e Ashe, após ter sua participação negada em 1969 e 1970, tentava se tornar o primeiro negro a competir na maior competição de tênis do país.
A história política norte-americana das últimas duas décadas fora marcada pela luta dos afro-americanos por direitos civis. Ashe estendeu essa luta para além do oceano. A decisão foi controversa e mesmo alguns grupos negros entenderam que a postura do tenista apenas fazia o governo sul-africano parecer mais humano. Mas ele insistiu, determinado a mostrar aos negros de seu país o que um dos seus poderia fazer se uma chance lhe fosse dada.
Ashe, cuja viajem se tornou sensação, mostrou mais do que ele próprio havia imaginado. Ele foi apelidado de "Sipho", o que na linguagem do famoso bairro negro Soweto significa "um presente". Aproveitando o apoio do público, Ashe chegou à final. Ele também teve seu carro guinchado pelas autoridades locais. Um dia, contudo, o norte-americano se viu seguido por um jovem homem negro. Quando perguntou ao homem por que o seguia, ouviu em resposta: "Nunca tinha visto um negro livre".
Arthur Ashe lutou pelos direitos dos negros ao enfrentar o regime do Apartheid e jogar o torneio da África do Sul |
Esta história, hoje, parece antiga. A saga política do mundo, entretanto, segue ainda hoje uma trajetória irascível, marcada pelo choque de civilizações, de destinos, pelas brigas entre leste e oeste. E a escala destes novos conflitos apenas faz com que os tenistas, trabalhadores itinerantes, estejam cada vez mais sujeitos a situações como a que Ashe viveu há mais de 30 anos. Nunca o envolvimento com a política foi tão real como hoje, quando os caminhos do esporte cruzam os acontecimentos do mundo. Em alguns momentos, lembra 1973. Na maior parte das vezes, parece um mundo diferente.
DO RACISMO AO EXTREMISMO
Quando Ashe foi para a África do Sul, ele era um notável cavalheiro rebelde, um campeão de Grand Slam tentando transpor a barreira do racismo e expor a injustiça para o mundo. Em fevereiro de 2009, quando dois relativamente desconhecidos tenistas de Israel, Shahar Peer e Andy Ram, tentaram se inscrever no torneio de Dubai, eles estavam, antes de tudo, tentando ganhar a vida.
O que se viu então foi uma mistura de choque e déjà vu , quando negaram a Peer um visto de entrada nos Emirados Árabes Unidos, uma nação islâmica que não mantém relações diplomáticas com Israel. A notícia ganhou as primeiras páginas, mas a reação do mundo do tênis foi diversa. As tenistas mais próximas a Peer foram criticadas por não boicotarem o evento, mas o presidente da WTA, Larry Scott disse que o circuito feminino não voltaria a Dubai enquanto não houvesse garantia de entrada no torneio para todos os seus membros.
Polêmica começou quando Shahar Peer foi impedida de jogar em Dubai |
A combinação entre a má publicidade - Dubai é islâmico, mas recebe milhões de dólares de turistas do ocidente - e a ameaça da WTA de levantar barraca teve seus efeitos. Quando o circuito da ATP chegou, na semana seguinte, Andy Ram recebeu seu visto. O israelense de 29 anos, um improvável Arthur Ashe, se tornou o primeiro tenista judeu da história a jogar em Dubai. "Foi algo muito importante, pensei", disse Ram. "Importante para os esportes, importante para a ATP, porque brigamos por isso, importante para o tênis, importante para Israel. Acho que foi um marco."
#Q#
MALMO
Que pena, o otimismo de Ram teria vida curta. Com os acontecimentos de Dubai, ele e seus colegas foram para Malmo, para o confronto de primeira rodada, pela Copa Davis, contra os suecos. Lá os esportistas de seu país sofreriam um humilhante revés, seguido por redenção, ao final de três conturbados dias.
Os acontecimentos em Malmo seriam dramáticos, mas eles não deveriam ter ficado surpresos. Situada numa ponta, no sudeste da Suécia, a cidade se tornou reduto de muçulmanos imigrantes. Quase 30% da população de Malmo é estrangeira, grande parte do oriente médio. À medida que o dia do confronto se aproximava, aumentava o temor por protestos violentos contra a ofensiva de Israel à faixa de Gaza, que cessara em janeiro.
Enquanto a polícia local defendia que a segurança de jogadores e torcedores estava assegurada, o conselho da cidade decidiu realizar a partida com portões fechados. Foi consenso que a decisão foi tomada pelo governo com inclinações esquerdistas da cidade para atender a interesses locais e punir Israel.
"Sei que a quadra poderia estar segura", disse Ram. "Vivo em um país seguro, sei que isso (oferecer segurança) é possível". O confronto seguiu. Para o desgosto de ambas as equipes, sob um mar de cadeiras azuis. "A atmosfera era terrível", lembra Ram. "Era morta. Tudo o que tínhamos era uns aos outros."
Isso não incomodou uma das pessoas que conseguiram entrar. Lola Piasecka, uma judia residente em Malmo, se juntou a outros 70 outros torcedores nas arquibancadas. "Foi ainda mais emocionante do que com o ginásio cheio", opina Piasecka. "Tivemos que apoiar por 4 mil pessoas (a capacidade normal da arena). Tivemos que fazer com que os jogadores sentissem nosso apoio e o quanto gostamos deles."
O temido caos não veio à tona na abertura do evento. "Fora do ginásio", lembra Piasecka, "havia uma centena de radicais. A atmosfera era tensa. Nenhum de nós sabia quando aquilo iria terminar". No sábado, a tensão explodiu, à medida que centenas de manifestantes anti-Israel entraram em conflito com a polícia.
A equipe da casa poderia ter utilizado esta força a seu favor. Apoiando um ao outro e jogando um tênis inspirado, Dudi Sela e Harel Levy venceram - cada um - uma épica batalha em cinco sets no último dia e avançaram para as quartas-de-final da Copa Davis pela primeira vez desde 1987. "Doeu mais nos suecos", diz Ram. "Eles normalmente têm uma torcida difícil de enfrentar. Eles fazem bastante barulho".
"Nós (torcedores de Israel) fizemos tudo por eles", diz Piasecka, articulando a última ironia do final de semana. "E eles, os jogadores, venceram!" Enquanto isso, Ram descreveria o ocorrido como "a pior coisa na história da Copa Davis". No fim, para o bem ou para o mal, o confronto que ninguém viu se tornou um evento que ninguém irá esquecer.
Medo de protestos fez com que a Suécia jogasse a Davis de portões fechados em casa contra os israelenses |
VITÓRIA TARDIA
O problema quando questões políticas intervêm na história é que elas acabam marginalizando todos os outros acontecimentos no caminho. Esse foi o caso na saga dos israelenses em 2009. Uma semana antes daquele conturbado fim de semana em Malmo, outro evento histórico aconteceu, o que traz de volta ao circulo uma antiga narrativa: Jo-Wilfried Tsonga, cujos pais nasceram no Congo, se tornou o primeiro negro a vencer o Aberto da África do Sul em Johanesburgo.
Não muito tempo atrás, como a saga de Ashe pela cidade em 1973 mostra, o feito do Tsonga teria sido (1) de incrível significância política; ou (2) impossível. Assim era. Em 2009, porém, ninguém deu muita atenção.
Ashe nunca viu o final do Apartheid. Ele morreu em 1993, um ano antes das primeiras eleições diretas na África do Sul. Mas ele fez parte de um processo que chamou a atenção para um regime de injustiças. Dezesseis anos depois, a África do Sul está longe de ser uma utopia, e o tênis não resolveu todos os seus problemas. Mesmo com todas as polêmicas em torno de arranjos de resultados que escandalizaram o tênis ano passado, o torneio foi realizado em um cassino.
O grande legado de Ashe, porém, foi Tsonga - um jovem carismático, grande estrela internacional, símbolo de sucesso para um continente - que, em vez de ser proibido de jogar tênis em Johanesburgo, provavelmente recebeu belos honorários para fazer essa viagem.
As posições de Ashe e a vitória de Tsonga, assim como o ano de frustrações e conquistas para os israelenses, mostram, novamente, que vale a pena quebrar barreiras - em novembro Peer teve sua participação aceita no estado islâmico de Bali - e o tênis de alguma forma pode ter ajudado a resgatar essa noção. Você sabe que foi um rebelde bem sucedido quando os outros sequer notam as mudanças que você promoveu.
From Tennis Magazine. Copyright 2010 by Miller Sports Group LLC. Distributed by Tribune Services
Publicado em 26 de Janeiro de 2010 às 15:48
+LIDAS