A revolução de 1968

O mundo passou por mudanças, o tênis também.Surgia a Era Aberta


Ron C. Angle/TPL

Imagine um ano em que tudo aconteceu. Sim, em 1968, tudo aconteceu. Ao menos era essa a impressão que se tinha na época. Quem já não ouviu falar de "Maio de 68", das manifestações estudantis na França? Ou então da "Primavera de Praga", quando os tanques russos invadiram a Tchecoslováquia? Ou ainda das inúmeras revoltas após a morte do líder negro Martin Luther King nos Estados Unidos? Ou, quem sabe, das manifestações em torno da Guerra do Vietnã? Ou, mais próximo de nós, da assinatura do AI-5, decreto mais duro do regime militar brasileiro?

Isso tudo, na verdade, é só uma amostra da efervescência que foi 1968, conhecido como "o ano que não terminou". Em meio a tudo isso, o tênis também se transformou.

Em fevereiro daquele ano, pressionada por todos os lados, a Federação Internacional de Tênis (ITF ) votou a favor de abrir alguns torneios para profissionais. Até então, as principais competições só tinham a participação de amadores, que não podiam receber dinheiro para jogar. Desde a década de 30, contudo, já existiam as turnês de profissionais contratados, que eram proibidos de jogar os torneios convencionais.

Esse quadro passou a mudar em 1968. Na época, a divisão entre tenistas amadores e profissionais ainda continuou, mas o alicerce para o riquíssimo circuito que se vê atualmente já estava instituído. Na ocasião, a ITF e as federações nacionais, que queriam manter o controle sobre os atletas, tiveram de aceitar a nova realidade, de um tênis cada vez mais mercantil.

A cada ano, os promotores "aliciavam" os principais amadores para seus torneios profissionais. Assim, os grandes eventos, como os Grand Slams, eram desfalcados de seus ex-campeões. Quando a televisão - sedenta por mostrar o melhor do esporte - começou a entrar no jogo, não teve jeito, a ITF teve de ceder ou veria seu poder ruir diante da força dos dólares dos promotores.

No começo, porém, as distorções ainda eram brutais. Por exemplo, no aclamado US Open de 68, com incríveis US $ 100 mil em prêmios, o campeão, Arthur Ashe - por ser amador - recebeu apenas US$ 20 por dia da federação norte-americana. O vice, Tom Okker - já profissional - ganhou polpudos US$ 14 mil. Naquele ano, quem mais dinheiro conseguiu angariar jogando no circuito, agora aberto, foi Rod Laver, com pouco mais de US $ 70 mil. Quantia irrelevante se considerarmos os mais de US $ 6 milhões que recebeu Rafael Nadal neste ano e os US$ 10 milhões que Roger Federer acumulou só em 2007.

Mas, o que importa é que, a partir daí, a grana começou a falar cada vez mais alto no tênis. Em 1970, o mesmo Laver, já ficou com US $ 200 mil. Em 1979, Bjorn Borg e John McEnroe, os dois primeiros do ranking, atingiram a casa de US $ 1 milhão na temporada cada. Em 1992, todos os top 10 ultrapassaram esta marca em rendimentos frutos exclusivos do tênis. Hoje, o circuito masculino oferece mais de US$ 100 milhões em prêmios.

Os anos seguintes a 1968, no entanto, foram tumultuados, com as mudanças não sendo totalmente digeridas por jogadores e organizadores. Com as ligas de torneios profissionais independentes brigando com a ITF e seu calendário, muitos profissionais ainda deixaram de participar dos Grand Slams nos anos seguintes. Até a adesão de todos os atletas à ATP (Associação dos Tenistas Profissionais), criada em 1972, muita confusão se via nas principais competições.

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Koch

Mais fácil?

Quem já não ouviu um tenista reclamando de falta de apoio e das dificuldades do circuito atualmente? Imagine a situação destes aspirantes a profissionais há quatro décadas. Um dos grandes nomes da história do tênis brasileiro, o gaúcho Thomaz Koch, lembra do tempo quando começava a tentar a sorte no desconhecido mundo do tênis: "Existia uma pressão muito grande. As pessoas encaravam a gente como vagabundos, como caras sem objetivos."

Naquela época, não se ouvia falar de muitos tenistas brasileiros; devido à falta de informação e atenção da própria imprensa. Assim, o apoio da família era a única base para qualquer menino na mesma situação de Koch. "Não era fácil você, com 16 anos, pegar um avião e voltar depois de quatro meses", conta. "Hoje, essa garotada têm mais dificuldade de encarar, botar a mala nas costas e se mandar. Nosso sucesso naquela época foi justamente pela dificuldade, pela nossa luta", completa.

A história de Koch certamente foi semelhante à de muitos garotos que começaram no tênis na época do amadorismo. Muitos que viveram esse momento de transição até hoje costumam lamentar a tardia profissionalização do esporte. E isso fez com que vários não continuassem a carreira de atleta.

Tavares (no alto) e Fernandes (baixo) viveram os dias de mudança

Luis Felipe Tavares, considerado o melhor juvenil do mundo de sua geração, lembra de como era pensar em dinheiro no tênis naquele período: "A única pessoa que ganhava algum dinheiro com o tênis (em 1966) era o número um do mundo, Manolo Santana, que recebia garantia dos torneios. O Roy Emerson também. Está certo que US$ 1.500 valia mais do que hoje, mas, mesmo assim era pouco". Ipe, que resolveu se tornar empresário, completa: "Eu encarava como uma oportunidade que estava me dando de jogar tênis, conhecer o mundo inteiro, aprender idiomas". E confessa: "Queria ganhar dinheiro e o tênis não dava dinheiro".

Em entrevista à Revista TÊNIS em 2003, Carlos Alberto (Lelé) Fernandes contou que quando a Era do profissionalismo chegou, os jogadores ainda estavam em dúvida: "Ninguém sabia se ia pegar ou não. Tenista profissional pagava hotel, inscrição e só ganhava alguma coisa se passasse a primeira rodada". Sobre os prêmios na época, ele lembrou: "Cheguei a ganhar torneio que me deu US $ 120, que era um ótimo prêmio na época. A maioria dava de US $ 50 a 75". Mas, foi decisivamente em 1968 que os tenistas começaram a se libertar das amarras das federações e puderam começar a sonhar em ganhar a vida fazendo o que mais gostavam: jogar tênis.

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Dinheiro, contratos, frieza...

A principal crítica que se faz aos novos tempos, recheados de contratos, cifras milionárias, propagandas e holofotes, é que a relação entre os tenistas esfriou. Companheiro de Edison Mandarino durante anos, não só em Copa Davis como também no circuito profissional, Koch ressalta a importância da relação entre os colegas em sua época. "A gente não tinha técnico, era você contra o mundo. Se tivesse bons parceiros de treinos, de viagens, ajudava bastante. Outra coisa legal era que o relacionamento com os tenistas de fora também era muito bom", rememora.

Luis Felipe Tavares vai além na análise: "O ambiente dos torneios era bem diferente do que é hoje. Agora só se vê agente para cá e para lá, empresário procurando atleta para representar, patrocinador de roupa, patrocinador de raquete. Virou um mercado grande, com muito dinheiro".

Ella Ling/RCA Productions
Após abertura para profissionais, torneios passaram a ter premiações exorbitantes

Como qualquer revolução, a Era Aberta trouxe seus prós e contras para o tênis. Lógico que a vida de um tenista de hoje, com prêmios e contratos milionários, é mais fácil que há 40 anos. O esporte é reconhecido no mundo, os jogadores são reverenciados por onde passam e as empresas olham cada vez com mais carinho para as oportunidades que a modalidade oferece.

Porém, quem teve a oportunidade de acompanhar e participar daquele período romântico do tênis - em que grandes nomes duelavam com suas raquetes de madeiras, vestidos em curtos shorts, e com vastas cabeleiras, ou até mesmo anteriormente, com calças brancas e jaquetas de lã - sempre reverenciará o glamour do esporte de então. "Eu preferia o tênis como era antes. É claro que não posso deixar de gostar de um Federer, de um Nadal, e reconhecer tudo o que eles representam, mas o tênis perdeu muito de seu charme. Alguma coisa ficou pelo caminho", lamenta Koch.

A força da mídia foi um dos fatores que fez com que o tênis mudasse em 1968
José Eduardo Aguiar

Publicado em 8 de Dezembro de 2008 às 07:22


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Artigo publicado nesta revista