Por cima da Muralha

A chinesa que desafiou o governo comunista para se tornar campeã de Grand Slam


Na Li

Ainda há muitos casos em que os pais projetam seus sonhos em seus filhos e os obrigam a ingressar em uma modalidade esportiva, mesmo a contragosto da criança. Mas e quando o jovem é obrigado a disputar um esporte por imposição do governo?

Acredite, o sistema esportivo da China funciona, até hoje, dessa maneira: selecionando a modalidade que as crianças devem praticar, obrigando-as a se dedicarem a ela em regime equivalente ao militar e, com isso, esperando que, no futuro, elas possam trazer medalhas e glórias para orgulho da nação comunista.

Na Li foi uma das “crias” desse sistema, porém, não exatamente como o governo gostaria. Aos cinco anos, seu pai a levou a uma escola esportiva controlada pelo estado para que a menina, assim como ele, jogasse badminton. Na época, contudo, o treinador disse que a garota não era apta à modalidade e “propôs” que ela fosse iniciada no tênis.

Assim como todas as crianças na escola, Li foi forçada a praticar exaustivamente um esporte que não tinha escolhido. Foi então que, aos 11 anos, desafiou, pela primeira vez, a autoridade governamental – na forma de seu treinador. Exausta, decidiu que não continuaria treinando. Sua punição foi ficar imóvel em um ponto até que a sessão acabasse. Passaram-se três dias assim até que a garota pedisse desculpas e voltasse a treinar – comprovando sua força de vontade.

Para se ter noção do quão rígido é o sistema esportivo chinês, o pai de Li morreu repentinamente de ataque cardíaco quando ela tinha 14 anos. Como ela estava em uma competição, a jovem não ficou sabendo da morte do genitor até chegar o fim do torneio em que estava participando na semana, quando seu técnico enfim a comunicou do fato. Com isso, ela sequer pôde ir ao enterro do pai.

Na Li
O pai de Na Li queria que a filha jogasse badminton na escola. O treinador, contudo, fez com que ela praticasse tênis

Rebeldia

No ano seguinte, Li foi convidada a passar um tempo no centro de treinamento da Nike nos Estados Unidos e, ao voltar, disse que queria ser uma top 10. Tudo ia relativamente dentro do planejado em sua carreira (que é totalmente gerida pelo governo, desde o treinador, até calendário e premiações) e, sim, havia a possibilidade de ela, um dia, tornar-se uma jogadora de elite. No entanto, em abril de 2002, aos 20 anos, ela sumiu.

Na Li

Aos 20 anos, a tenista fugiu do centro de treinamento chinês

Levando apenas uma pequena mochila (para não levantar suspeitas), deixou o centro de treinamento chinês e fugiu com o namorado Jiang Shan, com quem se casaria. Juntos, eles voltaram à cidade natal de Li, Wuhan, para recomeçar suas vidas como estudantes universitários. Enquanto Li estudava jornalismo e brincava de jogar com seus colegas, a nova diretora do programa de tênis do governo chinês resolveu visitá-la. A China queria fazer um bom papel nas Olimpíadas de Pequim em 2008, precisava formar boas bases em todas as modalidades e, como o tênis não era um esporte muito disseminado no país, não queria perder talentos à toa. Ofereceram a Li jogar “por si mesma”, algo raro, já que todos os atletas chineses “comuns” tinham toda a carreira literalmente definida pelo governo e, mais do que isso, precisavam dar 65% de seus rendimentos para a manutenção do programa estatal.

Apesar de ter ficado mais de uma temporada fora do circuito, Li resolveu voltar. No ano seguinte, tornou-se a primeira chinesa a vencer um torneio da WTA, em Guangzhou. Vale lembrar que, em 2004, a China conquistou pela primeira vez uma medalha olímpica no tênis, com o ouro surpreendente de Li Ting e Sun Tiantian. Quatro anos depois, foi a vez de Li chegar à semifinal das Olimpíadas em Pequim. Jogando diante da enlouquecida torcida de seu país, ela não suportou a pressão e chegou a mandar os fãs calarem a boca.

Depois disso, deu um ultimato ao departamento de tênis, que apesar de ter lhe prometido “liberdade”, ainda regulava muito de sua carreira. Juntamente com Shuai Peng e outros poucos tenistas do país, Li conseguiu mais liberdade, apesar de ainda ter de pagar cerca de 10% de seus rendimentos para o programa de tênis estatal.

Praça da Paz

Na Li

A “liberdade” e o discurso “individualista” de Na Li fizeram com que ela fosse perseguida pelos jornais do partido comunista

Dois anos depois, ela se tornou a primeira chinesa top 10 do mundo. No começo de 2011, para delírio dos fãs chineses, ela alcançou a final do Australian Open, perdendo para Kim Clijsters. Era a primeira vez na história que um tenista asiático havia chegado à decisão de um Grand Slam. Meses depois, ela entraria definitivamente para a história do tênis chinês e mundial.

No dia 4 de junho de 2011, exatos 22 anos depois do massacre na Praça da Paz Celestial, em Pequim, quando o governo comunista atacou jovens que protestavam contra o regime, Li conquistou o título de Roland Garros ao vencer a italiana Francesca Schiavone na final. A partida foi vista por nada menos que 116 milhões de chineses.

Apesar de o governo chinês exaltar suas vitórias como uma conquista do povo, a “liberdade” e o discurso “individualista” de Li, segundo a mídia do partido comunista, fizeram com que ela fosse perseguida pelos editoriais em seu país desde que ela se desligou do programa estatal em 2008. Por diversas vezes, seu patriotismo foi colocado em cheque pelos jornalistas. E mesmo lidando com tudo isso, ela foi adiante.

Apesar de estar no top 10 desde então, suas temporadas tiveram altos e baixos, mesmo com o treinador Carlos Rodrigues, ex-técnico de Justine Henin, incentivando-a. Foi graças a ele, aliás, que ela conseguiu contornar o mau momento logo após a vitória no Aberto da França. Com ele, no ano passado, prestes a completar 31 anos, ela voltou à fazer a final do Australian Open, perdendo para Victoria Azarenka.

Perguntada sobre aposentaria, pois é uma das mais velhas no circuito atualmente, Li dizia enfim estar gostando de jogar tênis. “Até os meus 15 anos, não gostava de tênis”, revelou certa vez. Então, para deixar ainda mais para trás qualquer possibilidade de deixar as quadras, seu começo de ano em 2014 foi espetacular, com o título no Australian Open e o segundo lugar no ranking.

Mais recentemente, porém, foi eliminada na primeira rodada de Roland Garros e na terceira em Wimbledon. Com dores no joelho (que a acompanharam por toda a carreira), ficou de fora dos torneios seguintes e logo os rumores de aposentadoria reapareceram.

Desta vez, contudo, eram verdadeiros. No dia 18 de setembro, a chinesa usou as redes sociais para anunciar que estava deixando o tênis “depois de quatro cirurgias no joelho”. “Aos 32 anos, meu corpo me diz que não poderei competir em nível top nunca mais”, lamentou. Seu legado para as novas gerações de chineses, porém, vai muito além das quadras.

Por Arnaldo Grizzo

Publicado em 27 de Outubro de 2014 às 00:00


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Artigo publicado nesta revista

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