Maria Esther e o padre

O dia em que a melhor tenista do mundo fez um padre fugir do seminário


Turim, 1961. A cidade está em festa desde o começo do ano. Muitos eventos estão sendo preparados para celebrar o Risorgimento, a unificação do reino da Itália ocorrida cem anos antes, em 1861.

Um século antes, a cidade piemontesa no vale do rio Pó tinha tido papel fundamental na constituição da república italiana, pois o proeminente Camillo Paolo Filippo Giulio Benso, mais conhecido como conde de Cavour, lá nascido, foi um dos protagonistas de todo o processo.

Para comemorar o centenário da data e homenagear Cavour, Turim recebeu diversos eventos, incluindo uma grande exposição, a Esposizione Internazionale del Lavoro, conhecida como Expo 1961, além do torneio de tênis, o Internazionali d’Itália, até então disputado em Roma, no Foro Itálico, desde 1935.

Somente naquele ano, a principal competição italiana trocou de sede e foi jogada nas quadras de saibro do Sporting Club Torino. A cidade recebeu os melhores tenistas do mundo na época, entre eles Rod Laver e Maria Esther Bueno – que, nos dois anos anteriores, havia sido considerada a número 1 do ranking.

Os fãs italianos estavam, obviamente, ávidos por acompanhar as disputas, especialmente com a possibilidade de vitória do maior tenista do país, Nicola Pietrangeli. Em 1959 e 1960, ele havia sido bicampeão de Roland Garros. O público compareceu em massa para apoiar o astro italiano. Sua vitória seria uma conquista da Itália e seu povo.

No entanto, “infiltrados” na plateia estavam também três jovens padres seminaristas brasileiros. Eles faziam seu noviciado na Ordem dos Missionários da Consolata, no centro de Turim, e ficaram afoitos com a notícia da presença da tenista brasileira na cidade.


Padre Julinho (à esquerda), junto com os colegas seminaristas Walmir e Adolfo tietaram Maria Esther Bueno. Foto foi autografada pela tenista

Anos de ebulição

O ano de 1961, além de ter importância histórica para o povo italiano, ainda marcou o começo de uma década de grande efervescência no mundo todo, inclusive no Brasil, especialmente no esporte.

“A Terra é azul”. Em 12 de abril daquele ano, foi assim que Yuri Gagarin descreveu sua visão do planeta ao ser o primeiro homem a ir ao espaço e dar uma volta, que durou pouco menos de duas horas, na órbita terrestre. Em agosto do mesmo ano, o Muro de Berlim começou a ser erguido. Um ano antes, surgiram os Beatles; um ano depois, os Rolling Stones.

“Maria Esther Bueno surgiu numa época de evolução e ebulição do mundo e da humanidade. Estavam desaparecendo os antigos costumes e nasciam novas tendências que giravam em torno de alguns líderes”, afirma o padre. Acima, a tenista com o presidente Juscelino Kubitschek

Enquanto isso, o Brasil podia ser considerado uma vedete mundial, especialmente no campo dos esportes. Alguns anos antes, em 1958, havíamos vencido a Copa do Mundo. O jovem Pelé já era considerado o Rei do Futebol e, juntamente com o time do Santos, seria bicampeão mundial em 1962 e 1963. E, atuando pelo Milan, o brasileiro José João Altafini, conhecido como Mazzola, era um dos principais jogadores do campeonato italiano – ele foi um dos artilheiros e venceu a competição em 1962.

Mas o nosso país também era notícia no campo da política. Em 1960, Juscelino Kubitschek havia inaugurado a nova capital federal, em Brasília – uma obra monumental de Oscar Niemeyer. No ano seguinte, Jânio Quadros assumiu a presidência e, meses depois, renunciou – fato que transformaria a nação para sempre.

Nosso protagonismo, contudo, não estava somente no futebol e na política. Maria Esther Bueno era o principal nome do tênis feminino no final da década de 1950 e início dos anos 1960. Com apenas 18 anos, em 1958, ela venceu seu primeiro Grand Slam, em Wimbledon, fazendo parceria com Althea Gibson. Um ano depois, venceu novamente o torneio inglês, desta vez em simples, assim como o US Open. Em 1960, já considerada número 1 do mundo, ela voltou a vencer Wimbledon e ficou com o vice nos Estados Unidos – e ainda ganhou todos os Majors daquela temporada em duplas.

Porém, Maria Esther não era apenas a melhor tenista do mundo de sua geração. Ela era a encarnação tenística daquela época. Era uma jovem ousada, que usava vestidos provocativos confeccionados com exclusividade pelo estilista Ted Tinling. Seu tênis agressivo e ao mesmo tempo elegante chamava a atenção do mundo. Era uma “transgressora”.

“Maria Esther Bueno surgiu numa época de evolução e ebulição do mundo e da humanidade. Estavam desaparecendo os antigos costumes e nasciam novas tendências que giravam em torno de alguns líderes”, lembra Júlio Wichiniski, o padre Julinho (como carinhosamente é chamado), hoje com 80 anos, mas que estava no auge da juventude, com 26 anos, quando encontrou-se com Estherzinha em Turim.


Devido ao centenário da Unificação Italiana, em 1961, o torneio foi jogado em Turim

Uma nova igreja

Se o mundo todo vivia uma época de efervescência, a situação não era diferente na igreja. Em 1958, após a morte de Pio XII, João XXIII assumiu o papado. Seu pontificado durou apenas cinco anos, mas deixou marcas profundas no catolicismo. Para a surpresa de muitos, o “Papa Bom”, como foi chamado, convocou o Concílio Vaticano II no fim de 1961.

A ideia era, literalmente, atualizar a igreja para o novo mundo que se avizinhava, fazer o “aggiornamento”. Foram quatro sessões até 1965 (nessa ocasião já sob o comando de Paulo VI, que sucedeu João XXIII) que serviram para regulamentar diversos temas e acabaram por modificar muito da estrutura da instituição, especialmente no que diz respeito à orientação pastoral.

Muitos estudiosos dizem que foi somente a partir desse concílio que a igreja, enfim, tornou-se aberta para o mundo. Uma das principais mudanças ocorreu no ritual da missa, que deixou de ser realizado em latim e passou para a língua vernacular. O ecumenismo passou a ser aceito e incentivado. As liberdades do ser humano, incluindo a religiosa, também foram debatidas e pregadas. Diversos fundamentos foram modificados. Nasciam os pilares de uma nova igreja católica, tão ansiada pelas novas gerações de padres.

“Nessa época de grandes transformações na igreja, eu estudava filosofia e teologia no Seminário Missionário da Consolata, em Turim. Acompanhava com entusiasmo e expectativa o nascer do novo jeito de ser da igreja. Infelizmente, a igreja dos meus sonhos ainda não aconteceu. Torço por ela”, conta o padre Julinho, lembrando que, até hoje, muito do que o bom João XXIII pregava e desejava com o concílio ainda não foi implementado, mesmo depois de transcorrido meio século.

Pecado?

Wichiniski certamente era, e ainda é, um padre à frente de seu tempo. Vindo de uma família humilde de poloneses, Júlio nasceu na cidade de Grão Pará, no interior catarinense, mudando-se depois para Rio do Oeste. Ainda muito jovem, aos 13 anos, entrou para o seminário. Colocar os filhos aos cuidados da igreja era uma forma de garantir um futuro, especialmente para as famílias numerosas e pobres, que muitas vezes não tinham o suficiente para alimentar suas crianças. Os Wichiniski tiveram 12 filhos.

“Passei a vida inteira no seminário”, diz Julinho. Do prédio do seminário em Rio do Oeste, ele, adolescente, podia ver a casa de seus pais. Proibido de sair, via sua família, seus irmãos, passarem pela rua. “Chorei tanto”, recorda. Mas cresceu alegre, resoluto e contestador.

Desde o começo, desafiava as rigorosas normas da igreja e seus superiores. Só queria fazer o bem para a comunidade que o recebia e nele depositava sua fé. Por isso, celebrava casamentos de graça para a população mais necessitada. Para não ser repreendido, juntava as esmolas que recebia, dava-as ao pároco, e dizia ter sido pelo pagamento das bodas.

Além disso, Julinho sempre foi uma das principais diversões do seminário. “Eu fazia malabarismo, era um artista. Fazia equilibrismo, a turma ficava arrepiada”, lembra, bem humorado.

Depois de passar por Erechim, no Rio Grande do Sul, em seguida por São Manuel e Sorocaba, no interior de São Paulo, Julinho, aos 22 anos, seguiu para a Itália para terminar sua formação como padre.

Em 1958, cerca de 120 noviços viviam no seminário de Consolata, em Turim. Sob regras muito rígidas, dedicavam seu tempo aos estudos. Júlio lembra que, do centro da cidade, era possível avistar o monte Superga e sua basílica. Em 1949, o local tinha sido palco de uma das maiores tragédias esportivas, quando o avião que transportava o time do Torino (considerado o melhor do mundo e base da seleção italiana) chocou-se contra uma das torres da basílica, matando todos os tripulantes. “Era triste olhar para lá”, conta Julinho, recordando ainda que seu maior tombo de bicicleta ocorreu lá durante um passeio.

Aliás, durante seus seis anos em Turim, Julinho era um expert em escapulidas. “Eu aprontava”, ri, lembrando que pegava a bicicleta e saia para passeios não autorizados pelos superiores. Assim, para visitar uma família amiga, sem pedir licença, várias vezes ele viajava a noite inteira de trem e, na noite seguinte, voltava para o seminário. Para visitar cidades vizinhas ou montanhas com as suas lindas paisagens de neve ou rochas, fazia por vezes mais de 50 quilômetros de bicicleta. “A minha maior aventura foi escalar o monte Cervino (Matterhorn) nos limites entre a Suíça e a Itália, com 4.478 metros de altura”, recorda.

Assim, em maio de 1961, ao ter notícia de que Maria Esther Bueno estaria jogando em Turim, Julinho não teve dúvida. Iria ver a brasileira jogar a qualquer custo. “Morando no exterior, nós, brasileiros, tínhamos orgulho do Brasil e de sua modernidade. Na roda de amigos, comentávamos como num país jovem acontecia uma grande história nos esportes”, diz.

“O seminário era um ambiente fechado, vigiado com muito rigor. Tudo era proibido e, qualquer transgressão, castigada. A batina que usávamos nos tirava a liberdade e a saída do seminário era muito difícil”, conta. Contudo, ele não se importava. “Era uma falta, mas não um pecado. Pecava contra a instituição, mas não contra a religião”, pondera. “Se recebêssemos vários castigos, poderia ser mandado embora. Mas, no fundo, talvez eu quisesse que me mandassem”, admite.

“Tênis é um esporte dinâmico, elegante, rítmico, harmônico, musical. É dança. É balé. Os braços e as pernas devem ser ágeis e leves. Esta é a imagem da tenista Maria Esther Bueno que ainda guardo, com saudade, na mente e no coração”, diz o padre

Na surdina

Julinho, juntamente com os colegas seminaristas Walmir Alberto Valle (hoje bispo emérito de Joaçaba, interior de Santa Catarina) e Adolfo Moratelli (já falecido, missionário em Roraima – que desistiu do ministério e tornou-se diretor de escola federal), decidiu que iria ver a brasileira jogar.

“Planejamos como sair sem sermos vistos. O seminário tinha duas portas de entrada e o portão da garagem. Aproveitamos o portão da garagem que, por acaso, estava aberto e o superior estava descansando. Deu certo”, lembra.

Porém, ao chegar ao Sporting Club, eles ainda estavam temerosos. “O medo foi durante o jogo. Como éramos diferentes na plateia, vestidos de batina, poderia vir algum jornalista nos entrevistar e transmitir pela TV. Estávamos correndo o risco de sermos expulsos do seminário. Mas, como o sonho era maior do que o medo, preferimos o sonho”, admite.

Ao lembrar da situação, Julinho filosofa: “Não foi o Deus do amor quem criou o pecado e o medo. Quem criou o pecado e o medo foi o deus que nós criamos, cheio de ódio, raiva e vingança. Quem criou o pecado não foi a religião do amor. Quem criou o pecado foi a religião que nós criamos, como instituição, que encheu o inconsciente do homem e da mulher de leis, de medos, de castigos e de condenações. Há muito tempo eu sou crítico, inconformado e inquieto diante desse deus e diante dessa religião que nós criamos”.

Voltando ao torneio, ele recorda da felicidade que foi encontrar-se com Maria Esther Bueno. “Sabendo que éramos brasileiros, ela veio ao nosso encontro, amável, feliz, encantadora e conversou bastante conosco. Tiramos fotos ao seu lado”, conta feliz.

As fotos foram feitas com uma máquina que pertencia a Julinho e reveladas no próprio seminário horas depois. Não contentes em transgredir as regras do seminário um vez, eles voltaram ao torneio: “Depois de reveladas, voltamos novamente para que ela as autografasse. Ela escreveu: ‘Sinceramente, 15 de maio de 1961’”.

No torneio masculino, Nicola Pietrangeli fez a alegria dos italianos e venceu Rod Laver na decisão por 6/8, 6/1, 6/1 e 6/2. No feminino, Maria Esther confirmou o favoritismo e, na final, derrotou australiana Lesley Turner, por 6/4 e 6/4. Poucos dias depois, infelizmente, quando estava disputando Roland Garros, a tenista brasileira caiu doente, com hepatite. De cama durante um mês em Paris, com ajuda somente de sua parceira de duplas Darlene Hard, Maria perdeu a chance de disputar Wimbledon. Ela só voltaria às quadras mais de oito meses depois.

Inspiração

“Tênis é um esporte dinâmico, elegante, rítmico, harmônico, musical. É dança. É balé. Os braços e as pernas devem ser ágeis e leves. Esta é a imagem da tenista Maria Esther Bueno que ainda guardo, com saudade, na mente e no coração”, afirma Julinho, um amante dos esportes em geral. Portanto, aquela não seria sua única “fuga” para ver um esportista. “Conheci Pelé e Mazzola em Turim”, diz.

Maria Esther e toda a conjuntura daqueles anos certamente influenciaram e inspiraram o peralta Julinho, que, anos mais tarde, resolveu deixar o seminário. “Deixei por um ano, para repensar”, revela. Nesse período, ele foi viver em meio à população carente do Rio de Janeiro, nas favelas. “Fui ficar com os pobres. Vi a bondade da pobreza”, conta. Depois dessa vivência, voltou à igreja.

Hoje, com 51 anos de sacerdócio, tem plena consciência de que deu-se mais a Deus e seus irmãos do que à igreja. Assim como Maria Esther transgrediu as regras do esporte em sua época, Julinho, com suas peripécias, sempre contestou a instituição, mas nunca a sua fé.

Por Arnaldo Grizzo

Publicado em 24 de Junho de 2015 às 00:00


Perfil/Entrevista Maria Esther padre melhor tenista do mundo Turim

Artigo publicado nesta revista

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