Guga

O protagonista narra sua história: Guga fala sobre a conquista do tri de Roland Garros

Em comemoração do tricampeonato de Gustavo Kuerten em Roland Garros, a Revista TÊNIS preparou um especial com relatos da conquista e depoimentos exclusivos de Guga


Reprodução: Twitter/Roland Garros

Alguns afirmam que uma das coisas mais difíceis é se tornar o primeiro do mundo em qualquer esporte. No entanto, os que lá chegaram dizem que o mais complicado, na verdade, é manter-se no topo. E foi essa faceta amarga desta privilegiada posição que Gustavo Kuerten teve que enfrentar em 2001.

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Em 2001, Guga fez algo que poucos foram capazes de fazer na história: defender um título de Grand Slam. Ron C. Angle/TPL

No fim de 2000, com uma campanha maravilhosa e inesquecível no Masters de Lisboa, ele se tornou número um do mundo. E, como diria Pete Sampras, um alvo passou a estar estampado em suas costas. Ele era o homem a ser batido durante a temporada.

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E foi nesse momento que Guga se provou um grande campeão. Foi um bravo e sustentou a liderança sem titubear, sem medo, rejeitando a pressão. Em 2001, foram seis títulos de ATP e dois vice-campeonatos. O mais importante, obviamente, foi o tricampeonato em Roland Garros. Na verdade, a defesa do título do ano anterior.

Relembre os grandes momentos da campanha de Guga em 2001:

Antecedentes

Até o início da competição, o brasileiro estava entre os jogadores que mais se destacavam no piso lento. Na gira latino-americana, em fevereiro, o "manézinho da ilha" foi reverenciado com trajetórias impecáveis na bela Buenos Aires e na paradisíaca Acapulco.

E, após dura derrota frente aos australianos na Copa Davis, mesmo jogando em Florianópolis, Kuerten partiu para os principais eventos preparatórios antes de Roland Garros.

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Suas escalas em Monte Carlo e Roma mostraram porque o intitularam de "Rei do Saibro". Em Mônaco, recebeu a taça do príncipe Albert. Nessa competição, o jovem argentino Guillermo Coria mostrou seu potencial e atingiu a semi, só perdendo para Guga.

 No Foro Itálico, Guga foi soberano até a final, derrotando Alex Corretja nas quartas (ele viria a ser seu adversário na final em Paris), mas a ótima fase do espanhol Juan Carlos Ferrero foi demais para o pupilo de Larri Passos.

Contudo, nem a precoce eliminação em Hamburgo foi capaz de abalar a confiança do brasileiro para o Aberto da França.

Os fãs brasileiros aguardavam pela confirmação daquele que se tornaria, segundo as palavras do russo Yevgeny Kafelnikov, o "Picasso" das quadras de Roland Garros. Lá, o coração verdeamarelo brilhou absoluto no topo do esporte que, outrora sem tradição, se tornou uma paixão cada vez mais emergente para o povo brasileiro. "O sabor de 2001 foi maior do que os outros anos que venci em Roland. Garros", garantiu o nostálgico catarinense. Em Paris, a Cidade-Luz, quem brilhou novamente foi Guga, o brasileiro com cara de surfista, que conquistou a todos com seu carisma e simplicidade.

Posterior

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Em seguida de sua vitória em Roland Garros, ele somou mais um troféu no saibro, em Stuttgart. Tamanho sucesso no saibro lhe garantiu a confiança necessária para fazer boas campanhas na temporada de quadras rápidas norte-americanas, que culminou com o campeonato no Masters Series de Cincinnatie no ATP de Indianápolis, com vitórias soberanas sobre alguns dos maiores especialistas em pisos duros como o australiano Patrick Rafter, o croata Goran Ivanisevic e o inglês Tim Henman. No US Open, também fez uma grande campanha alcançando as quartas, que contou um jogo épico contra o bielorusso Max Mirnyi.

Kuerten só perderia a liderança do ranking depois de 43 semanas na Masters Cup. Mas sua história já estava gravada nos livros de tênis e na memória dos fãs que jamais esquecerão aquele gesto tão espontâneo e genuíno de riscar o coração na lendária Philippe Chatrier.

A voz da experiência

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Contra um adversário talentoso, porém ainda inexperiente, Guga conseguiu se impor na estreia.

"O jogo contra o Coria foi interessante, porque ele era bem jovem ainda, mas já vinha se destacando. Então, foi uma estreia bacana. Das primeiras rodadas, acho que foi o jogo que mais chamou a atenção das pessoas. Era o primeiro ano dele no circuito, ele já tinha obtido algumas vitórias sobre jogadores bons, mas eu estava distante, meu nível era muito acima do dele naquela época. Obviamente, ele estava mais nervoso quando entrou para jogar comigo na quadra central. Todo mundo teve aquela sensação de querer ver o que ia acontecer, porque, seguramente, ele ia ser um dos favoritos para ganhar este torneio em alguns anos. Um cara que, se tivesse uma chave um pouco melhor, poderia ter chegado bem mais longe. Mas, a situação em si favoreceu a mim, tinha a experiência de jogar Roland Garros, estava mais acostumado a lidar com esse tipo de situação. Ele sentiu o peso desses fatores externos da estreia e o jogo foi bem tranquilo."

Jogos que se encaixam

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"Na segunda rodada, mais um argentino. Enfrentei o Calleri, ganhei de 3 a 0 também. Era um cara contra quem eu gostava de jogar, meu jogo encaixava legal. Dei as cartas do jogo, abri vantagem logo cedo em todos os sets e não tive muitas dificuldades para fechar a partida. Mesmo passando sem perder nenhum set no torneio, queria evitar euforia e ir jogo por jogo".

Após o jogo, Kuerten procurou manter a humildade até nas expectativas. "Chegar às quartas ou às semifinais já será um grande resultado aqui", afirmou logo após a partida, parecendo prever os "percalços" que encontraria a partir da próxima fase.

A conquista na voz de Fernando Meligeni

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O 'Fino' foi semifinalista de Roland Garros em 1999.

"Naquele momento, Guga já era um cara respeitado, era o cara a ser batido. Roland Garros, para a gente e, principalmente para o Guga, era toda a preparação de um ano, um torneio especial. E ele tratava Roland Garros sempre com muito respeito. Depois que conquistou pela primeira vez em 97, começou a achar muito que podia ganhar quase todo o ano. A partir de 2001, ele falava como um dos favoritos, porque tinha consciência de que, se ele jogasse bem, ganharia o campeonato. E isso não é uma forma de desrespeito, mas apenas uma constatação. Dentro da quadra, ele era um verdadeiro gênio! Ele tem um talento, uma maneira de jogar incrível e todo mundo elogiava, afinal, poucas pessoas conseguem o que ele fez. Hoje em dia, você fala com o Federer, com o Nadal e todos elogiam o Guga porque foi um excelente jogador, um dos melhores de todos os tempos. Então, 2001 foi mais uma grande conquista dele, foi uma excepcional forma de mostrá-lo como um excelente tenista e uma grande pessoa que é."

Começa a tensão

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"Foi na terceira rodada que começou ficar mais complicado. O jogo contra o Alami foi mais chato, ele sacou bem para caramba aquele dia e é difícil ganhar ponto dele. Ele estava acostumado a ganhar de caras muito bons, e outras vezes perder de caras que não estavam tão bem no ranking. Mas era perigoso no circuito. Lembro que joguei na Suzanne Lenglen (segunda quadra mais importante do complexo), a quadra estava muito lenta e os marroquinos têm muita torcida em Paris."

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Vencer o tiebreak do terceiro set foi crucial para ganhar confiança

"Ele estava muito inspirado, corria para todos os lados, vibrava e qualquer um quer ganhar do jogador favorito, ainda mais que ganhou o torneio no ano anterior. Então, tudo isso dificultou um pouco a trajetória. Ganhei o tiebreak em um momento importante, no terceiro set, em que o jogo estava parelho. Na minha carreira, acabei perdendo mais tiebreaks do que ganhando, mas quando precisava, eu ganhei [risos]. Acho que ajudou ter um pouco mais de confiança na hora certa e também a experiência daquelas situações. Era o momento para decidir e foi isso o que aconteceu."

A bola na linha no matchpoint e o coração

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"Com certeza, foi o jogo mais marcante na parte emocional da minha carreira. Fiquei muito surpreso com a forma que ele iniciou jogando. Entrou como se fosse o jogo da vida dele. Não errava nenhuma bola. Estava ventando bastante, não conseguia encaixar meu jogo e já considerava uma partida perdida. Perdia para ele por 2 sets a 0, 5/2 e tinha certeza absoluta que eu ia voltar para casa no dia seguinte. E foi uma bola, literalmente, na linha - que poderia ter saído um centímetro - que definiu o jogo. A pressão passou para o lado dele e, na minha cabeça, já despertou uma sensação de que, se ele tivesse receio de vencer, aí seria minha grande chance".

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Depois da virada espetacular, Guga desenhou um coração na quadra

"Foi até surpreendente o que consegui gerar de reação, de superação, entrega e inspiração, porque isso não é comum de acontecer nesta altura do campeonato para jogadores que estão melhor ranqueados. A partir dali, a certeza da derrota se transformou na vitória e foi o suficiente para eu começar a jogar muito bem, de forma inspirada, achei a motivação que precisava. Consegui encontrar uma relação de entrega, de felicidade com as pessoas, com a torcida que ocasionou aquele momento inesquecível do coração. Por isso que foi, simbolicamente, o momento de maior envolvimento que eu tive no tênis e, até hoje, é a partida que mais mexeu com meus sentimentos profundos em minha carreira."

Grandes nomes do tênis nacional, Ricardo Acioly e Paulo Cleto comentam o tri

Ricardo Acioly: "Guga mudou a maneira de se jogar no saibro nos anos em que dominou o circuito. Já tinha ganhado Roland Garros por duas vezes, portanto sempre entrou em quadra como total favorito. Eu acho que o jogo contra o Russell ajudou muito ele no aspecto psicológico. Olhando friamente, este confronto deveria ter sido o mais fácil do torneio e quase se tornou o 'pior pesadelo' da vida dele. Passar pela situação de estar quase fora do torneio sendo derrotado por um 'desconhecido' e conseguir dar a volta por cima certamente deu um belo susto, mas também acho que deu aquele ar de que 'agora que passei por este aperto ninguém me segura mais'. A partir daquele momento, quem quisesse ganhar de Guga teria que realmente jogar melhor que ele, o que naquele momento, naquele estádio, era muito difícil. Acho que tudo isso somado ao alto astral que ele tinha dentro da quadra dava a sensação de que, ao vê-lo jogar, você estava presenciando algo realmente especial."

Veja os melhores momentos da vitória de Guga sobre Michael Russel:

Paulo Cleto: "Virar uma partida como Guga fez diante de Russell não era para qualquer um. O título em 2001 representou a consolidação do brasileiro como melhor do mundo, como o grande jogador no saibro. Em 97, ele não era conhecido por ninguém e conquistou o torneio. Em 2000, a situação era diferente porque ele não era número um e tentava repetir uma campanha que ele não conseguiu realizar nos dois anos anteriores e o público já conhecia ele, já sabia do potencial, então foi um momento mágico. Já em 2001, ele era o maior favorito e teve que carregar o peso ao longo do evento, tinha a responsabilidade de defender o título sendo o tenista a ser batido. A vitória de Kuerten contra o Ferrero foi a melhor partida que eu tive o prazer de acompanhar nos três anos em que ele ganhou em Paris. Um grande duelo, uma decisão antecipada, na minha opinião, em que os dois jogaram muito tênis e ajudou a coroar o melhor momento de sua carreira."

Picasso das quadras

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"O Kafelnikov é aquela 'pedreira'de sempre, em todas as edições de Roland Garros, ele era indigesto, um cara que tem muita qualidade. O jogo foi muito difícil, em quatro sets. Talvez foi, das três partidas que fiz com ele em Roland Garros (1997, 2000 e 2001), a que eu mais tive o domínio das ações. Depois que venci o Russell, ganhei uma nova vida, então, a partir do momento que me senti excluído do torneio - sem chance nenhuma e, de repente, me dão uma outra oportunidade -, eu estava mais confiante do que nunca! Independentemente de quem viesse, estava disposto a fazer as coisas de maneira melhor e meu tênis estava amadurecendo em si."

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Kafelnikov afirmou que Guga era o "Picasso das quadras"

"Nessa ascensão, consegui encontrar algumas facilidades para jogar contra o Kafelnikov e, mesmo ele jogando muito bem aquela partida, ganhou um set por situações em que foi muito preciso, acertou bolas incríveis, não teve por onde. Eu sentique comecei a jogar em um nível muito acima dos outros no torneio." "É muito difícil jogar contra Guga. Se lhe derem liberdade, ele é um Picasso das quadras", foi a frase dita por Kafelnikov depois da partida e que ficou famosa.

Precisão

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"O jogo que definiu o título foi contra o Ferrero, que vinha como o principal favorito naquele ano. Não tinha outro jogador no mesmo nível que eu para competir. Até antes do torneio, todos estavam com uma expectativa por esse confronto. Acho que até ele pensava dessa forma e não esperava que fosse vencê-lo em 3 sets e jogar tão bem, conseguindo neutralizar as jogadas dele."

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Partida contra Ferrero "definiu" o título do torneio

"Tinha, dentro da minha estratégia, a ideia de levar o jogo com os pontos mais curtos, tomar meu tempo, prolongar os intervalos, porque estava bem cansado, vinha de vitórias em 5 sets nas oitavas e 4 sets nas quartas. Ele vinha mais fresco, então não poderia desperdiçar minhas oportunidades. E foi isso que aconteceu, consegui levar com tranquilidade em um ritmo interessante, sempre comandando a iniciativa dos pontos. Aquele jogo foi muito comparado com aquele diante do Agassi na final da Masters Cup. Fechei todas as portas, fui muito feliz nos riscos e ele não teve alternativa. Consegui controlá-lo do começo ao fim. Foi uma surpresa para qualquer especialista de tênis, inclusive para nós. Foi a performance mais precisa de todos os jogos que fiz em Roland Garros."

O coração eterno

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"Contra o Corretja, foi muito mais difícil do que esperava. Ali, eu tinha a perspectiva de que conseguiria vencer com mais facilidade. Mas ele surpreendeu com a forma como começou o jogo, atacando mais, não se intimidando com minha figura e me enfrentou de igual para igual. Conseguiu levar o primeiro set para o tiebreak, que ele acabou vencendo. No segundo, tive um break-point contra quando sacava em 5/5, 30/40, em que ele teve a maior chance, assim como aconteceu com o Russell, e passou a um domínio total meu. Ele errou uma bola por um centímetro, uma devolução que ele arriscou em um ponto importante, o que vinha fazendo com êxito naquele jogo. E, a partir dali, consegui confirmar meu saque, quebrei o serviço dele, fechando em 7/5 e ele desmoronou. Se ele ganhasse aquele segundo set, a tendência era que o jogo fosse para o lado dele."

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Partida contra Corretja foi mais difícil do que se esperava

"Mas sempre a minha virtude em Roland Garros era de pensar 'sei que as coisas podem não sair do jeito que quero, mas quando o barco virar e as coisas virem para o meu lado, o cara não vai ter escapatória'. Por um lado, foram muito duros esses dois primeiros sets, mas depois foi tranquilo porque consegui relaxar bem, curtir os últimos games, saborear aquela vitória. Compartilhar aquele momento, olhar para trás e ver o que tinha acontecido e ter a certeza - 'agora, estou aqui em um final feliz!' E o coração, novamente no final, foi com a intenção de retribuir o amor e carinho às pessoas que me apoiaram, demonstrar o que aquilo significava para mim. Uma coisa que vai além do tênis, da competição, é o envolvimento com as pessoas, a busca, a entrega. O que desejava naquele momento era transmitir a importância e a relevância desse carinho que significava para mim e também a minha paixão pelo tênis."

Confira os melhores momentos da final de Roland Garros em 2001:

Matheus Martins Fontes

Publicado em 24 de Maio de 2019 às 13:11


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Artigo publicado nesta revista