Um dos passos mais básicos do tênis esconde os segredos de uma boa antecipação
Elson Longo em 16 de Junho de 2016 às 10:36
A associação entre o split step (passo separado, em inglês) e as habilidades de antecipação nem sempre pode ser intuitiva. O split step é uma ação muito conhecida, ensinado com frequência desde as primeiras aulas de tênis. Sua execução não abriga grandes dificuldades: um pequeno salto para cima caindo com as pernas separadas um pouco além da linha dos ombros. Muitos jogadores iniciantes, depois de um breve tempo de dedicação, já são capazes de executá-lo. O que muitas vezes passa despercebido é a dificuldade de sincronizar o split step com o jogo. Realizar essa ação no momento exato é habilidade de poucos e requer atenção especial.
A movimentação no tênis é cíclica. Ela começa no split step. Em seguida, o jogador se movimenta para a bola (seguindo padrões bem definidos de movimentação de acordo com a distância, situação tática e direção), golpeia-a e, em seguida, recupera-se até realizar um novo split step. Simples assim:
O diagrama ilustra o que denominamos o ciclo da movimentação. Fica claro que tudo começa e termina no split step.
Quando se joga tênis, nosso cérebro realiza quatro etapas básicas no processo de golpeio: percepção, decisão, execuçã e análise. De maneira bem simplificada, esse processo pode ser resumido da seguinte forma:
Notamos que essas etapas também formam um ciclo. Logo após o jogador analisar sua ação de golpeio, ele deverá perceber o próximo golpe do adversário e assim sucessivamente.
Como esses dois ciclos ocorrem ao mesmo tempo em cada ação de golpeio, devemos entendê-los de maneira simultânea. As funções de perceber ocorrem, temporalmente, na eminência do contato do adversário. Quando o adversário está por golpear, os jogadores interrompem a recuperação e fazem o split step. Assim, fica fácil entender que os processos de percepção são realizados durante o split step.
Após perceber, o jogador decide. Esse processo decisório ocorre no final da ação do split step e durante a movimentação. Uma vez tomada a decisão, o jogador executa, que é quando efetivamente golpeia a bola. A analise é feita logo após a execução, sendo iniciada na terminação do golpe e durante a recuperação.
Concluímos então que a maior parte da percepção de um jogador acontece juntamente com a ação do split step. Como sabemos que a antecipação está aliada à percepção, ela também irá ocorrer, temporalmente, dentro da ação do split.
Para melhor entender o que seria a antecipação, vamos usar o seguinte problema como ilustração. Uma vez, no tiebreak do segundo set das quartas de final do US Open de 2007, Andy Roddick proferiu um saque a 240km/h, no lado dos iguais, bem próximo ao “T”. Para seu espanto, quando Roddick estava aterrissando, a bola quicava no seu pé. Era a devolução de Roger Federer. Confira no vídeo:
Um saque a 240 km/h leva 0,6 segundo para chegar ao devolvedor. O tempo mínimo de reação humana é de 0,3 segundo (tempo entre a tomada de consciência de um evento e o início de uma ação motora). Portanto, Federer teria apenas 0,3 segundos para cobrir aproximadamente 3 metros, criar um apoio e golpear a bola à frente de seu corpo. Por mais que ele seja rápido, não é possível realizar todas essas ações em tão pouco tempo. Como então ele conseguiu devolver o saque?
Para tornar esse enigma ainda mais misterioso, recentemente a ATP divulgou que somente 8% dos serviços não são tocados no circuito, ditos, aces. Ou seja, de cada 100 saques, em apenas 8 os jogadores não conseguem tocar na bola. Nos outros 92 eles conseguem, sim, realizar a devolução. Isso afasta totalmente a hipótese de que tenistas agiriam como goleiros que tentam adivinhar o lado em que o atacante vai chutar.
A solução para esse problema de cinemática se esconde no domínio da antecipação. Federer não começa suas ações como devolvedor no impacto da bola de Roddick. Ele entra em movimento antes. Realiza o split step antes. E consegue aterrissar no solo praticamente no instante em que Roddick está impactando a bola. A bola sai da cordas de Roddick e Federer sai simultaneamente ao encontro dela. Na verdade, ele tem 0,6 segundo para efetivamente realizar a devolução. Mas, para fazer isso, o jogador deve perceber a intenção de golpeio antes que ele aconteça: ter uma “ação antes”. Trocando a ordem dessas duas palavras: “antes ação” – “antecipação”.
A antecipação consiste nessa incrível habilidade de prever algo antes que o evento ocorra. O que Federer e outros jogadores da elite do tênis fazem, consiste em trabalhar com a informação do pré-golpe. Quando a raquete do oponente é acelerada para a frente, ao encontro da bola, ela envia informações que são percebidas e processadas pelos jogadores. Antes do impacto, os tenistas já estão obtendo uma leitura eficaz de onde a bola será enviada: estão antecipando a ação do oponente.
Quando os jogadores estão terminando o split step, prestes a tocar no chão, na eminência do impacto do adversário, já conseguiram processar a natureza do golpe do oponente. Uma prova disso é o fato de que, ao aterrissarem, um dos pés sempre toca a superfície primeiro que o outro. Isso pode ser comprovado com vídeos de “slow motion” ou fotos instantâneas. Um pé chega primeiro ao solo para deixar o pé que está no ar livre para a entrada em movimento. Se o pé esquerdo, por exemplo, chega primeiro, é por que o jogador vai se mover para o lado direito através da projeção do pé direito. Em outras palavras: os jogadores aterrissam com uma clara tendência de movimento, comprovando que, no momento do impacto, já anteciparam para onde a bola vai.
E como isso é possível? Como esse jogadores são capazes de ler o pré-golpe de seus adversários?
Nada pode ser mais vantajoso que estar à frente das ações de seu adversário. Para isso, vamos realizar uma experiência muito simples: convidar o professor de um clube e outra pessoa que nunca jogou tênis para assistirem a uma partida. Digamos que o professor, de 50 anos, tenha jogado tênis toda sua vida desde os 10 anos. Tem 40 anos de tênis, sendo que passou, em média, 6 horas por dia nestes 40 anos em uma quadra de tênis. Supondo que, em cada minuto na quadra, o professor assistiu a, em média, duas trajetórias de bola, ele já presenciou, em sua vida tenística, aproximadamente 10 milhões de trajetórias de bola. Um número bem significativo quando comparado ao nosso outro convidado que nunca sequer viu uma trajetória.
Pede-se então a essas duas pessoas que digam se a bola golpeada na partida em questão vai cair dentro ou fora, logo que ela abandona as cordas da raquete de um jogador. Vamos notar que o professor, assim que a bola é golpeada, já consegue predizer se ela é boa ou fora. Nosso convidado, por outro lado, além de não conseguir dizer nada, mal consegue seguir a bola com os olhos. O professor está realizando uma ação de antecipação. Consegue saber, no início da trajetória, onde ela vai terminar, antes que ela termine.
Mas vamos mais a fundo para entender como o cérebro desse professor está funcionando. No início da trajetória da bola, ela fornece uma informação de movimento, que vamos denominar “A”. Essa informação chega até o cérebro do professor. Quando a informação chega, imediatamente, o cérebro busca uma informação semelhante, verifica se aquela informação já existe. E consegue encontrar uma informação “A” gêmea, pois dispõe de 10 milhões de trajetórias em seu “banco de dados”. Quando ele encontra a informação “A”, o cérebro já consegue saber que tipo de trajetória é aquela e se a bola será dentro ou fora.
Esse processo, de maneira muito abreviada, pode ser comparado aos celulares modernos que, quando você digita uma palavra, antes mesmo de a terminar, ele já a completa. O celular possui um banco de dados de palavras. Cada letra que você insere, ele rapidamente vai comparando com seu banco de dados, até encontrar a palavra que você vai escrever antes que termine. Por exemplo, se você quer escrever “querosene”, quando digitar “querose” ele já será capaz de antecipar sua palavra, pois não existe nenhuma outra em seu banco de dados com essas características. A grande diferença entre essas duas pessoas do experimento é o “banco de dados” que cada uma delas possui.
A origem da antecipação está em termos um incrível banco de dados associado à uma percepção aguçada. A percepção pode ser treinada e o banco de dados adquirido com horas de quadra, com o tempo. É a experiência em si. Federer já havia devolvido centenas de vezes o saque de Roddick antes de realizar aquela incrível devolução. O saque de Roddick já constava no banco de dados do suíço.
Como sabemos, todo o processo de antecipação acontece no breve intervalo de tempo de ocorrência do split step. Portanto, deve-se haver uma sincronização fina entre a execução do split step e o pré-golpe do oponente. É nesse ponto que reside a dificuldade de se fazer um bom split step. A ação de saltar e cair com os pés separados não é complicada, mas sua inserção no instante exato para que ela seja válida é extremamente precisa. Como o pré-golpe ocorre em décimos de segundos, essa sintonia fina também obedece a ordem temporal de frações decimais do segundo.
Confira na ilustração abaixo uma sequência abreviada da sincronização desses dois eventos:
O pequeno salto que compõe o split step pode parecer simples, mas esconde complexos processos de percepção visual, comparação mental e tomada de decisão. É nesse curto momento que os jogadores conseguem ir além do tempo para predizer onde a bola será enviada. Um salto até o futuro. Por trás de sua simplicidade, o split step esconde uma sincronia fina, de décimos de segundo, com os eventos que acontecem do outro lado da rede. Pequeno no tamanho, mas muito grande no tempo.