Como a “Batalha dos Sexos” mudou a história do tênis feminino
Por Arnaldo Grizzo em 22 de Setembro de 2013 às 00:00
“O JOGO DE 1973 foi mais sobre uma transformação social do que sobre tênis”, diz a protagonista da mais célebre partida da história. Não, não foi uma final de Grand Slam. Foi uma disputa entre um homem e uma mulher, a chamada “Batalha dos Sexos”, quando Billie Jean King derrotou Bobby Riggs para “provar” ao mundo que as mulheres mereciam ser equiparadas aos homens.
A década de 1970 foi uma época conturbada. Diversos movimentos pipocavam no mundo. Um deles, o feminista, estava em pleno vapor. As mulheres ganhavam espaço na sociedade, equiparando-se aos homens com direitos garantidos por lei. A principal figura da luta feminista no tênis era Billie Jean, um dos maiores expoentes do tênis de então. Em 1970, ela e outras oito tenistas assinaram contrato com a recém-criada Virginia Slims Series, uma série de torneios com grande premiação para mulheres. Três anos depois, King fundou a Women’s Tennis Association (WTA) uma semana antes de Wimbledon. Ainda em 1973, a lei Title IX (uma legislação inovadora que garantia distribuição igualitária dos recursos governamentais para homens e mulheres em escolas e universidades) tinha passado no congresso dos Estados Unidos.
Na época, muita gente ainda debochava das conquistas das mulheres e do movimento do “Women’s Liberation” (libertação feminina). Nesse cenário de contestação, um velhote de 55 anos, ex-campeão de Wimbledon e do US Open, resolveu se autopromover e lançar um desafio às principais tenistas do mundo. Ele desafiava-as a vencer um “homem com um pé na cova”. A número um do mundo na época, a australiana Margaret Court, resolveu encará-lo.
No dia 13 de maio, em Ramona, na Califórnia, Riggs – “um apostador nato”, segundo conta Thomaz Koch, que o conheceu pessoalmente – destroçou Court, vencendo por fáceis 6/2 e 6/1. Ele, contudo, não ficou satisfeito. Seu “alvo” era Billie Jean, a grande defensora dos direitos das mulheres.
“Riggs era um fanfarrão, era um rustler, como dizem os americanos. E a Billie Jean era muito safa. Ela não era número um na época, a Margaret era. Quando ele ganhou da Margaret, não teve repercussão, pois um homem ganhar de uma mulher não dava repercussão”, lembra Paulo Cleto, que estava nos Estados Unidos na época.
“Tinha que jogar contra Bobby e tinha que vencê-lo”, Billie Jean King
O ano de 1973 deveria ser lembrado por ser o centenário da “invenção” do tênis. Em dezembro de 1873, o major Walter Wingfield “criou” a modalidade, patenteando-a no ano seguinte. No entanto, essa temporada é lembrada pela Batalha dos Sexos, como ficou conhecida a partida entre Riggs e Billie Jean, que resolveu aceitar o desafio do “porco chauvinista”.
“A lei Title IX tinha acabado de passar e eu verdadeiramente queria vencer o jogo contra Bobby para mudar o coração e a mente das pessoas para entender o real significado da lei”, afirma Billie Jean. Então a partida foi marcada para o dia 20 de setembro, uma quinta-feira, em Houston, Texas, em uma arena para mais de 30 mil pessoas, com transmissão ao vivo para 37 países. O prêmio oferecido ao vencedor era de US$ 100 mil.
“A criação desse jogo, na época, foi uma grande sacada. Hoje, a mídia esportiva sabe que um jogador 150 do mundo ganha da número um do ranking feminino. Naquela época, a proporção era exatamente a mesma. Mas a mídia comprou aquela ideia da Batalha dos Sexos e aquilo virou um fenômeno”, lembra Marcelo Meyer, que não chegou a ver a partida, pois estava no Brasil e aqui ela não foi transmitida. Ele recorda que “Riggs vivia tirando sarro das mulheres e Billie Jean tomou as dores”.
“Quando Margaret perdeu, imediatamente sabia o que tinha que fazer: não tinha escolha, tinha que jogar contra Bobby e tinha que vencê-lo”, contou Billie Jean no livro “Pressure is a privilege”. A partida foi anunciada quatro meses antes de o duelo ocorrer realmente, dando tempo de se fazer muita promoção. Por fim, no dia marcado, diante de 30. 472 pessoas que pagaram cerca de US$ 100 para assistir ao jogo in loco, King precisava provar que as mulheres mereciam os direitos que haviam conquistado a duras penas.
“Ela entrou em quadra em uma liteira”, recorda Koch. O ambiente do gigantesco Astrodome, local do duelo, era uma festa. Muita luz, muita gente, uma balburdia. Os promotores fizeram Riggs entrar em quadra puxado por um riquixá por mulheres, com uma jaqueta amarela onde se lia “Sugar Daddy” (seu patrocinador). Billie Jean não ficou atrás e veio à quadra em uma liteira suspensa por homens musculosos.
“O Bobby Riggs ganhou Wimbledon, mas já estava com 50 e tantos anos. Porém, tinha ganho da Margaret Court antes. A aposta era grande. Era um jogo melhor de cinco sets, que as mulheres não estavam acostumadas a jogar. Ninguém sabia o que ia acontecer”, aponta Koch. O jornalista Odir Cunha discorda: “Ele já tinha mais de 50 anos. Só os mais machistas acreditavam que ele poderia ganhar da Billie Jean”. Mas Koch revela que os palpites “estavam muito divididos na época. A Billie Jean era favorita. O normal seria acontecer o que aconteceu. A mobilidade dela era muito maior, a força nos golpes também. Ele, porém, tinha muita manha e tirava o adversário do jogo”.
A partida começou tensa e ruim para as mulheres. No quinto game, Riggs quebrou o saque de Billie Jean, que se mostrava nervosa. Ao perceber que as bolas de seu adversário não tinham peso, apenas se aproveitavam da potência que ela imprimia, King resolveu mudar de tática e somente passar a bola para o outro lado da quadra. Logo ela devolveu a quebra. Mais do que isso, foi desgastando o opoente. Ela acabou vencendo o primeiro set por 6/4. No segundo, confirmou fazendo 6/3. No terceiro, repetiu o placar do set anterior. Era a vitória de que todas as mulheres precisavam.
“Ainda hoje homens e mulheres vêm a mim e dizem como assistir àquele jogo mudou suas vidas. Mulheres que estavam trabalhando sentiram-se mais aptas a pedir aumento para seus chefes. E os homens jovens, que viram a partida, tornaram-se a primeira geração de homens no movimento feminista. Agora muitos deles têm filhas e querem as mesmas oportunidades para elas e para os seus filhos. Isso, para mim, é o mais importante e duradouro legado desse jogo”, afirma Billie Jean.
“Na minha opinião, isso foi a maior jogada de marketing que aconteceu em toda a história do tênis”, acredita Meyer, que completa: “A mídia do mundo inteiro, esportiva ou não, deu um destaque para essa batalha de uma maneira que o tênis sozinho jamais teria alcançado naquela época. Quem ganhou com essa batalha foi o tênis”. Koch compartilha da mesma visão: “Falava-se pouco de tênis fora do ambiente tenístico. Esse jogo teve uma repercussão extra-tênis. Foi muito maior que o tênis. Em todo lugar só se falava nisso”.
“Foi a maior jogada de marketing que aconteceu em toda a história do tênis. A mídia do mundo inteiro, esportiva ou não, deu um destaque que o tênis sozinho jamais teria alcançado naquela época. Quem ganhou com essa batalha foi o tênis”,
Marcelo Meyer
Mas, mais do que tênis, o movimento feminista ganhou novo alento. “O jogo se tornou um marco. Por causa da Billie Jean umas duas ou três leis de igualdade entre homens e mulheres passaram no congresso dos Estados Unidos. Ela tinha as ideias, mas não conseguia implementar. Com a repercussão desse jogo, ela conseguiu fazer as coisas que pretendia. Ela mudou a história do tênis, e do esporte nos Estados Unidos”, aponta Cleto. Meyer concorda: “Billie Jean foi a tenista que conseguiu tudo para o tênis feminino do ponto de vista de premiação, tudo o que o tênis feminino tem é mérito dela”.
“Nossa sociedade está em um patamar diferente hoje. Tive sorte e aconteceu de ocorrer na hora certa. Em 1973, o movimento feminista estava no auge e tudo foi no momento exato”, Billie Jean King
Apesar de a repercussão do jogo ter sido pequena no Brasil, Odir Cunha lembra que o movimento em prol do tênis feminino alcançou as nossas tenistas tempos depois. “Foi uma época que coincidiu com o movimento feminista e no Brasil houve algo parecido em 1975. As tenistas brasileiras criaram um movimento para que as mulheres fossem valorizadas. Elas criaram a LIFT (Liga Feminina de Tênis) durante o Campeonato Brasileiro daquele ano”, diz o jornalista que escreveu essa história no livro “O tênis feminino no Brasil”, de sua autoria e editado pelo Sesc de São Paulo em 1989.
Gláucia Langela foi a primeira presidente do grupo que pretendia unir as jogadoras, elevar o nível técnico do tênis feminino, proporcionar um maior número de torneios, angariar patrocinadores etc. Anos mais tarde, já mais conscientes, as mulheres se uniram de novo para boicotar o Campeonato Brasileiro de 1980, que oferecia às mulheres um quinto do prêmio ofertado aos homens. Por fim, apenas juvenis participaram da disputa naquele ano, em que Niége Dias foi campeã.
Passados 40 anos da Batalha dos Sexos, seu legado para o tênis feminino é inegável, assim como para o movimento feminista. “As mulheres ainda não ganham as mesmas quantias – nos esportes ou nos negócios. Isso é um reflexo da sociedade e os esportes são um microcosmo da sociedade. De maneira geral, os esportes masculinos tiveram um caminho mais fácil para atrair patrocinadores. E ainda que o tênis seja o esporte feminino mais forte, temos um longo percurso para estar em pé de igualdade e ter o mesmo dinheiro dos homens. Essas são mudanças que não acontecem do dia para a noite e isso tem ocorrido desde o início dos tempos. Sim, temos feito progresso no fronte feminino, mas ainda temos um longo caminho para sermos verdadeiramente iguais”, aponta Billie Jean.
Depois de 1973, ocorreram algumas tentativas de recriar esse jogo entre homens e mulheres. Em 1985, por exemplo, Riggs voltou a amolar as tenistas. Ele fez parceria com Vitas Gerulaitis para enfrentar a dupla Martina Navratilova e Pam Shriver. Mas os homens perderam novamente, por 6/3, 6/2 e 6/4.
Em 1992, novo duelo, quando Navratilova encarou Jimmy Connors. Mesmo com Jimbo jogando com apenas um saque por ponto e tendo que defender uma quadra maior, ele superou Martina por 7/5 e 6/2. Em 1998, as irmãs Williams resolveram desafiar os homens, dizendo que venceriam qualquer um fora do top 200. O alemão Karsten Braasch, então 203 do ranking, entrou no jogo e venceu ambas, a mais velha por 6/2 e a mais nova por 6/1.
Seria preciso uma nova Batalha dos Sexos hoje para provar o ponto de vista das mulheres, se é que ainda há algo para ser provado? “Um jogo hoje nunca terá o mesmo contexto que em 1973. Muitos promotores têm tentando, há pelo menos 10 ou 15 anos, uma partida entre Serena Williams e John McEnroe. Mesmo que isso traga algum atrativo para o tênis, não estou certa de que terá o mesmo impacto de quando joguei contra Bobby Riggs. Nossa sociedade está em um patamar diferente hoje. Tive sorte e aconteceu de ocorrer na hora certa. Em 1973, o movimento feminista estava no auge e tudo foi no momento exato. Mas, no geral, os esportes femininos ganham mais atenção quando vão para as arenas masculinas. Assim foi quando joguei contra Bobby e quando a golfista Annika Sorenstam jogou no Colonial, no PGA Tour, quando ela ganhou mais atenção do que em qualquer momento de sua carreira. Depois que Bobby e eu jogamos, a popularidade do tênis, especialmente na América do Norte, explodiu”, finaliza a protagonista da mais famosa partida de tênis da história.
Armação?Pouco menos de um mês antes de a Batalha dos Sexos completar 40 anos, um artigo da ESPN trouxe uma dúvida: Bobby Riggs teria entregado o jogo contra Billie Jean? Nele, o repórter Don Van Natta Jr traz o depoimento de Hal Shaw, um ex-empregado de um clube de golfe em Tampa, na Flórida, que diz ter ouvido dois integrantes da máfia discutirem uma proposta de Riggs. O ex-tenista teria proposto fazer duas partidas contra a número um do mundo,Margaret Court, e contra Billie Jean, sendo que ele venceria Court e entregaria o jogo para King para liquidar uma dívida de US$ 100 mil que tinha com a máfia. Tão logo essa informação veio a público, Billie Jean se pronunciou dizendo que, em nenhum momento suspeitou que Riggs estivesse fazendo corpo mole. Há quem, porém, afirme que houve, sim, algo de estranho durante toda a partida. “Acho que eles combinaram tudo. Foi um bom jogo. Ela foi para cima, fez o que sabia, sacou e voleou, mas foi combinado”, diz Paulo Cleto. Já Thomaz Koch duvida disso: “Conheci o Bobby. Eu estava em Los Angeles tempos antes da partida e andava bastante com o Pancho Segura, que era muito amigo do Bobby. Na época, todos se perguntavam qual era o palpite para esse jogo, se o Bobby Riggs tinha chance ou se era uma viagem dele. Esse era o papo na época. Qual seria o desfecho de um jogo desses? O Bobby era um apostador nato. Tudo era motivo de aposta. Ele deve ter apostado nele muito dinheiro”. Para defender sua tese, Koch lembra: “Quando ele ganhou Wimbledon, apostou nele muita grana. Nesse jogo contra a Billie, ele deve ter perdido bastante, pois se entrou é porque acreditava que ia ganhar. Acho difícil ele ter apostado contra si mesmo”. |