O talento de David Nalbandian surpreendeu Roger Federer em seus primeiros anos e levou a Argentina a sonhar com títulos na Copa Davis
Por Matheus Martins Fontes em 23 de Outubro de 2013 às 00:00
É DIFÍCIL IMAGINAR UMA SITUAÇÃO em que brasileiros e argentinos andem em sintonia e decidam torcer por um mesmo objetivo. Já é da cultura de cada um dos vizinhos “secar” o rival em uma disputa decisiva de qualquer coisa. No futebol então, nem se fala. É só o país do lado ser eliminado numa competição que o outro já faz festa. E muitas vezes essa rivalidade exacerbada acaba invadindo os limites de outras modalidades, inclusive o tênis.
No Brasil Open, por exemplo, cansamos de ver Gustavo Kuerten e seus compatriotas sendo apoiados pela torcida contra tenistas hermanos, que, constantemente, reclamavam do clima hostil. Quase todos sentiram isso na pele durante anos.
Mas, em 2013, vimos o público do Ginásio do Ibirapuera aclamar um argentino. Carrancudo sim, mas de um caráter ímpar e que impressionava por fazer o tênis parecer fácil enquanto empunhava a raquete. Foi um rei, aliás “El Rey” David Nalbandian, como dizem os periodistas argentinos, e deu uma pequena amostra de seu melhor nível ao ir à final do ATP brasileiro, sempre com casa cheia durante os seus jogos.
Em outubro, o jogador de 31 anos anunciou sua aposentadoria do esporte em meio a várias lesões, mas deixa ao tênis muitas lições, desde para quem se espelha em um backhand perfeito de duas mãos (sua marca registrada) até quem sonha em defender seu país de forma tão apaixonada na Copa Davis.
O talento suficiente para bater Roger Federer nos dias de glória acompanha Nalbandian desde os tempos de juvenil. Em 1998, o argentino de Córdoba mostrou toda sua versatilidade nos pisos mais rápidos ao abocanhar o troféu do US Open, derrotando o suíço na decisão dos júniors. No ano seguinte, veio a conquista em Wimbledon nas duplas ao lado do compatriota Guillermo Coria, feitos que o coroaram como um dos mais promissores jogadores da geração que despontava.
E foi ali mesmo nas quadras de grama do All England Club, em 2002, que “Nalba” alcançou a primeira façanha profissional, com a final de Wimbledon, quando tinha apenas 20 anos. Até a temporada seguinte, já tinha entrado no top 10 do ranking e vencido Federer cinco vezes.
Nalbandian manteve-se no pelotão de elite do circuito por muitos anos – foi número 3 do ranking em 2006 –, acumulando outras quatro semifinais de Grand Slam. Em 2005, o argentino surpreendeu ao conquistar a Masters Cup de Xangai, e novamente algoz de Federer. O torneio não estava nos planos de Nalba já que não havia terminado entre os oito melhores da temporada, mas várias desistências viabilizaram a participação do tenista. “Estava pescando com uns amigos [quando fui chamado]. Fui jogar o torneio praticamente sem treinar”, recorda o argentino, que foi derrotado por Federer no primeiro jogo da fase de grupos. Ali quase ninguém esperava que Nalbandian pudesse seguir adiante, mas a imprevisibilidade também foi aliada do hermano e o guiou na campanha em solo chinês. Ele se recuperou com três vitórias consecutivas e desbancou Federer, praticamente imbatível no piso rápido, em uma final memorável de cinco sets, após estar perdendo por 2 sets a 0. Dois anos depois, Nalbandian aprontou novo estrago. Conseguiu dois títulos de Masters 1000 na sequência, em Madri e Paris, batendo Federer e Rafael Nadal em ambos os eventos. A série é lembrada até hoje pelos maiores historiadores do tênis e companheiros de profissão como um dos capítulos de maior genialidade do argentino em quadra.
Para o mineiro André Sá, que nunca o venceu pelo circuito, a habilidade foi algo notável no jogador desde o juvenil, principalmente pela excelência do seu backhand de duas mãos, com o qual podia colocar a bola onde quisesse. “David era um jogador completo que atuava bem em todos os pisos, tinha uma facilidade enorme para mudar o ritmo e a direção com seu backhand, encontrava ângulos quase impossíveis dentro de quadra. Não tinha ninguém que executava um golpe de forma tão perfeita. Quando o enfrentava, o que mais me incomodava era sua devolução de saque. Sempre me via na defensiva, já que ele me colocava muita pressão”, aponta.
“A forma que se entregava nos jogos de Copa Davis era especial. Mesmo quando estava machucado, colocava-se à disposição e, uma vez em quadra, só sairia de maca”, lembra o jornalista argentino Eduardo Puppo
O gaúcho Marcos Daniel destaca o respeito que Federer e Nadal tinham ao encararem Nalbandian, apontando o nível do argentino como ideal para levá-lo ao topo do ranking. “Ele foi um dos poucos jogadores que, com o talento que tinha, poderia desbancar o Federer e o Nadal no ranking. Foi um dos poucos jogadores que enfrentava o Nadal e dava 6/2 e 6/2. Jogava com o Federer e vencia, de virada, em cinco sets na quadra rápida. É um jogador de talento ímpar. Talvez se conseguisse manter o foco só no tênis, como Nadal, Djokovic e Federer fazem, ele chegaria ao número 1”, opina o ex-tenista.
Assessor de imprensa do ATP de Buenos Aires, Eduardo Puppo complementa o vasto arsenal de Nalbandian, citando a sua facilidade para escolher a melhor tática contra seus adversários. “Os jovens podem contemplar sua antecipação e, sobretudo, seu aspecto estratégico. Para mim, David foi um dos grandes estrategistas do tênis. Sempre fiquei impressionado com sua leitura do jogo – parecia que o rival poderia bater várias bolas que ele finalizaria o ponto no momento em que quisesse. Ele tinha esse dom e o próprio Federer disse, muitas vezes, que, quando David jogava bem, era muito difícil derrotá-lo”, opina o jornalista.
Marcos Daniel relembra um confronto no US Open de 2008, quando percebeu que o nível de Nalbandian estava muito acima dos outros. “Foi um dos poucos adversários que fez me sentir um ‘bobão’ em quadra. Naquele US Open, eu jogava para fazer game contra ele. Saí da quadra entendendo o porquê de Federer e Nadal terem dificuldade contra David. Joguei contra os dois e nenhum me deu tantas dificuldades da primeira vez. Mas naquele jogo, não tive oportunidades, David me anulou de uma forma que parecia que eu estava na sétima marcha, enquanto ele, tranquilo, ainda estava na segunda”, conta o brasileiro, que perdeu por 6/1, 6/2 e 6/4.
Seria injusto, todavia, olhar a carreira do argentino sem sua maior contribuição para o país – as várias participações na equipe da Copa Davis. Em 10 anos de história, Nalbandian acumulou 39 vitórias em 50 jogos, o segundo com mais triunfos em jogos de simples (23v-6d) e o maior vencedor em jogos de duplas (16v-5d), levando a Argentina à decisão em três anos (2006, 2008 e 2011). Fernando Grisolía afirma que Nalbandian deu um novo conceito para quem olha a Copa Davis como prioridade na careira. “Para ele, a Copa Davis foi o torneio no qual se sentiu mais confortável. Era onde a qualidade do seu jogo brilhava mais, apesar de tantas adversidades físicas ao longo da carreira”, afirma o jornalista que trabalha na Radio Punto de Buenos Aires. O repórter argentino crê que as seguidas lesões – mais de 15 ao longo da carreira – impediram o jogador de dar novas alegrias à torcida e até prolongar sua trajetória no esporte, mas que ainda assim, não foram suficientes para tirá-lo da equipe titular.
Eduardo Puppo concorda com o companheiro de profissão. “A forma que se entregava nos jogos de Copa Davis era especial. Mesmo quando estava machucado, colocava-se à disposição e, uma vez em quadra, só sairia de maca. Mas não sinto que David jogou querendo ser herói, considero que era algo mais forte do que ele. Ser ‘copeiro’ não se aprende, já vem incluso no pacote, assim como foi com David”.
Entre tantos confrontos, Nalbandian ainda é lembrado por vários momentos da fase áurea do tênis argentino, como a vitória contra a Austrália numa quadra de grama em Sydney, em 2005, quando David calou Lleyton Hewitt e a barulhenta torcida. Marcos Daniel também exalta seu desempenho na final contra a Rússia em Moscou há sete anos. Mesmo derrotados, os argentinos anotaram dois pontos com duas vitórias de Nalba. “O confronto era diante da Rússia do [Nikolay] Davydenko, que jogava o torneio com mais frequência, e o Nalbandian foi lá, parado não sei quanto tempo, pegou a raquete e ganhou dele e do Safin. O empenho que ele tinha em jogar a Copa Davis é um exemplo a ser seguido por todos”, afirma o gaúcho.
PerfilDavid Pablo Nalbandian |
Espelho para muitos, Nalbandian também pecava por seu forte temperamento em quadra. Quem não se lembra do episódio na final do ATP de Queen’s em 2012 quando, num momento de descontrole, acabou acertando um chute, sem querer, no juiz de linha e foi desclassificado? Na opinião de Ariane Ferreira, jornalista do Tenis News, isso só mostra como o argentino era ligado à emoção, que às vezes o prejudicava. “A personalidade não era das mais fáceis. Nalbandian era estourado, errou algumas vezes ao externar suas frustrações, seja em quadra, entrevistas ou vestiários, como se sabe”. Ainda assim, o argentino compensava os instantes de antipatia com a espontaneidade no bom jeito argentino de ser. “David sempre foi ótimo para entrevistas, tem uma boa cultura geral, fala o que pensa e ainda faltam pessoas que saibam se expressar nesse meio. Mas, acima de tudo, era nítido o seu sentimento de esportividade, o tal ‘fair play’. Nalba foi muito respeitoso com os colegas, com a torcida e sempre mostrou amor pelo seu esporte”, encerra.
Entre erros e acertos, o que fica de Nalbandian é a imagem de um jogador diferente e atrativo, admirado pelos companheiros de circuito e implacável para conseguir seus objetivos, mesmo quando não estava em totais condições para isso.