Coragem recompensada

Único brasileiro a se arriscar no qualifying do Australian Open 2010, Ricardo Hocevar viveu dias inesquecíveis em Melbourne Park

José Eduardo Aguiar em 22 de Fevereiro de 2010 às 14:18

Há pouco mais de 20 minutos, Ricardo Hocevar havia acabado de disputar uma batalha de 1h59, três sets e muita, mas muita emoção. Agora, lá estava o paulista de 24 anos, estirado ao chão, exausto, ainda se recuperando física e mentalmente de sua terceira partida na chave qualificatória do Australian Open.
A rotina pós-jogos, como sempre, deveria ser cumprida. Da quadra para a esteira, onde mesmo entregue ao cansaço sempre realiza uma corrida de, pelo menos, 15 minutos. "Para soltar, relaxar", conta. Nesse 16 de janeiro de 2010, porém, a suada vitória tinha um significado muito especial. Pela primeira vez em sete anos como profissional, o brasileiro disputaria a chave principal de um Grand Slam.

No vestiário dos jogadores, hora de realizar uma série de alongamentos, nada mais natural para um atleta. Mas, dessa vez, a rotina seria interrompida por uma notícia que mudaria a sua vida. "Estava me alongando quando o Marcos (Daniel) chegou com a chave principal em mãos", lembra o tenista. "Eles já haviam distribuído os qualifyers na chave, e eu cai justamente contra o (Lleyton) Hewitt".
Atualmente com 29 anos e muitos problemas de contusão, principalmente em suas costas, o australiano, alguns dizem, já não é mais o mesmo. Porém, em 2009, mostrou que continua, sim, jogando em alto nível. Não à toa, chegou a Melbourne como 22º cabeça-de-chave, além, claro, de trazer consigo uma imensa e apaixonada torcida - ansiosa por ver um tenista da casa vencer o torneio após décadas.

Para Hocevar, matematicamente falando, a chave apresentava alguns caminhos mais tranquilos. Christophe Rochus (85º do mundo), Rajeev Ram (84º), ou até mesmo a jovem promessa local, Bernard Tomic (289º). Porém, lá estava o paulista colocado diante do ex-número um do mundo e experiente Hewitt - que conhece Melbourne Park como poucos. Azar?
Não seria melhor enfrentar algum adversário "mais tranquilo"? Não para o destemido brasileiro, que agora teria a chance de jogar na tradicional Rod Laver Arena.

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Hocevar esteve perto da derrota no quali, mas se superou para conseguir a vaga

Coragem e exemplo

A história de Hocevar na Austrália, porém, começaria muito antes. Quem vive e acompanha o tênis brasileiro sabe que o primeiro Grand Slam da temporada está longe de trazer boas recordações para os tenistas do país. No auge de sua brilhante carreira, nem mesmo Gustavo Kuerten conseguia voltar de lá com bons resultados na bagagem. Distância, fuso-horário, falta de condições físicas e técnicas logo no começo do ano. Todos esses fatores dificultam e sempre dificultaram a vida dos brasileiros do outro lado do mundo.
Diante desse quadro, a maioria de nossos tenistas simplesmente abre mão de tentar a sorte em Melbourne Park. Exceção feita a Thomaz Bellucci e Marcos Daniel na chave de simples e os mineiros André Sá, Marcelo Melo e Bruno Soares nas duplas - já garantidos na chave principal - todos os outros destaques do tênis brasileiro viraram as costas para o Australian Open 2010. Todos, menos um, Ricardo Hocevar.

Enquanto alguns de seus "contemporâneos" e com rankings parecidos - como João Souza, Caio Zampieri e até mesmo Thiago Alves (este um pouco mais velho) - optaram por disputar o esvaziado Challenger de Salinas, no Equador, o sobrinho de Marcos e Alexandre arriscou tudo e seguiu para a "terra dos cangurus".
"Muitos falam sobre o tempo de viagem, que é de 25 horas. Mas a viagem para Salinas não fica muito atrás e também é bastante cansativa", lembra o então número 194 do mundo. "O pessoal não vêm mesmo por causa do fuso-horário, com medo de que isso prejudique e o desempenho e os faça ´perder a viagem´".

Porém, confiante de que, desta vez, finalmente conseguiria jogar seu primeiro Grand Slam (havia ficado no quali por duas vezes no US Open, uma em Roland Garros e uma em Wimbledon), o jovem de 24 anos arrumou as malas e seguiu longa viagem rumo a Melbourne. "Na verdade, estava meio indeciso, mas uma conversa com o (Fernando) Meligeni e mais o apoio do meu técnico, o Eduardo Eche, me fizeram ver que era hora de arriscar".

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O homem das viradas !
Era hora, então, de encarar a longa e cansativa jornada. Sozinho, deixando toda sua equipe na retaguarda em São Paulo, Ricardo desembarcou em Melbourne dois dias antes de sua estreia no quali. "Cheguei e notei que minha mala não havia vindo. A companhia aérea me emprestou algumas roupas e tive de pedir ajuda da organização para treinar.
Só fui ter as minhas coisas comigo no dia seguinte", lembra. Mas nada que abalasse a confiança e a vontade do brasileiro.
Após uma pré-temporada forte ao lado de Bellucci e Alves em Angra dos Reis, o paulista garantia estar "jogando o melhor tênis da carreira".

Após uma sessão de treinos, um fato curioso marcaria a passagem de Hocevar no torneio. Um passeio pelo complexo, que ele conhecia pela primeira vez, indicaria que algo diferente estava para acontecer. "Entrei na Rod Laver para dar uma olhada e, de cara, senti uma emoção que não consigo descrever. Era, disparada, a quadra mais bonita que já havia visto na minha vida. Nem imaginava que uma semana depois estaria jogando nela".
Jogando um tênis sólido, passou com tranquilidade a primeira rodada do qualificatório. As duas seguintes, porém, foram de matar qualquer torcedor do coração.

"No segundo jogo, estava perdendo por um set a zero e 5/2 no segundo", lembra o paulista. "Mas coloquei na minha cabeça que conseguiria virar a partida, que ninguém tiraria de mim a chance de jogar meu primeiro Grand Slam".
Dito e feito. Com muito coração, virou uma partida quase perdida e passou a se ver a um passo do maior sonho de sua carreira. "No último jogo, mais uma batalha. Um set atrás e uma quebra contra. Mais uma vez tive que virar na raça, na vontade. Não cruzei o mundo à toa, essa era a minha vez", conta. A festa, claro, foi muito grande. Emocionado, o humilde tenista ainda teve que passar um bom tempo distribuindo autógrafos a agradecendo o apoio de alguns torcedores brasileiros que acompanharam sua trajetória na semana.

Hocevar treina na quadra central de Melbourne Park para enfrentar Hewitt

De desconhecido a selo postal
Reservada apenas para treinos de nomes como Roger Federer, Rafael Nadal, Serena Williams e outros poucos tenistas, a Rod Laver dificilmente abre suas portas para jogadores fora do top 10. Exceção, e nem sempre funciona dessa maneira, para atletas que jogarão por ali na rodada seguinte. E esse era o caso de Hocevar, que conseguiu um raro, mas importante horário para reconhecer o lugar em que jogaria dali a dois dias.
Era domingo à noite, treino marcado para as 20h, e lá estava o brasileiro entrando na imensa e bela quadra central de Melbourne Park. Até então vazia, claro, mas que dois depois estaria repleta, com 15 mil torcedores empurrando o ídolo local Lleyton Hewitt.
Um bate-bola já visando os pontos fortes do adversário, com recepção de saques bem abertos e muitas trocas de esquerdas cruzadas. "Estou confiante. Sei que chegou o momento de jogar com caras como esse e tenho a certeza de que tenho minhas chances de ganhar. Claro que ele é o favorito, mas jogarei solto e tentando usar os meus melhores golpes", sonhava o brasileiro momentos antes da partida mais importante de sua vida.

No Brasil, seu feito já era destacado pela imprensa, todos reconhecendo seu esforço e sua coragem. O que ele não esperava era o assédio da imprensa local. Primeiro rival do maior ídolo australiano, o brasileiro era procurado por todas as partes para falar sobre sua carreira e suas expectativas sobre o confronto. Após algumas entrevistas em inglês, foi convidado pela organização do torneio para uma ação em conjunto com um dos patrocinadores oficiais do evento. Resultado: o até então desconhecido brasileiro ( pelo menos para os australianos) virou selo no país da Oceania. Logo sua foto estava nos jornais e sites locais.

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"O momento foi único, claro. Mas não quero que isso seja apenas algo que fique guardado em minha memória e pronto", afirmou Hocevar

O jogo

Após desfrutar todos os momentos de atenção antes da partida, era hora de Hocevar entrar em quadra e mostrar ao mundo o tênis que o levou a disputar seu primeiro Grand Slam. "Porém, entrei meio nervoso. Não é fácil jogar diante de 15 mil pessoas, alguns gritando durante os pontos, atrapalhando seu saque. Claro que grandes tenistas já estão acostumados com tudo isso, como é o caso do Hewitt", conta o paulista. "Ele, então, sentiu a minha desconfiança inicial e começou com tudo, sendo agressivo e não me dando brechas para entrar no jogo. Em 15 minutos já liderava por 5 a 0".
A síntese do próprio tenista explica exatamente como foram os dois primeiros sets da partida, com Hocevar tentando encaixar seu jogo e o australiano - com seus famosos e intimidadores "C'mons" - não deixando o adversário respirar. "A partir do final do segundo set acho que comecei a entrar no jogo, soltar um pouco a minha direita, que é meu golpe favorito. Aquele jogador do último set, sim, era o Hocevar", se orgulha.

"Claro que saio com uma sensação de que poderia ter feito mais, de que o que mostrei não foi exatamente o jogo que tenho. Mas, ao mesmo tempo, pude perceber que o cara (Hewitt), apesar de ter sido número um do mundo, não é tão distante de mim. Se pego ele em meu clube sei que tenho boas chances de ganhar. O ambiente em si que acabou me prejudicando".

Visibilidade e futuro
Coragem, força de vontade, muito trabalho. Essas palavras foram muito usadas para descrever a ida de Hocevar à Austrália. Ele jogou bem, desfrutou cada momento de sua "fama" em Melbourne. Teve a oportunidade que poucos brasileiros tiveram até hoje, jogou em uma quadra central de Grand Slam, palco de alguns dos maiores momentos da historia do tênis. Enfrentou um adversário que ele mesmo considera um espelho, "um cara que trabalha sempre duro e que nunca dá nada de graça ao adversário".

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Porém, consciente, sabe que terá ainda mais trabalho pela frente para que isso tudo não seja passageiro em sua carreira. "O momento foi único, claro. Mas não quero que isso seja apenas algo que fique guardado em minha memória e pronto. Quero viver isso outras vezes, sei que chegou a hora de jogar grandes jogos, contra grandes jogadores", confia o paulista, ciente do duro caminho que terá pela frente. "Mas sei, também, que para isso terei que trabalhar ainda mais, treinar dobrado. Se cheguei até aqui foi graças a muito esforço, só minha família e meus amigos sabem o que passei. Mas não fiz tudo isso para me dar por satisfeito agora. Tenho um longo caminho pela frente e seguirei com a mesma força de vontade atrás de mais momentos como esse".

A história de Hocevar na Austrália, claro, ficará marcada para sempre na vida do jogador. De família toda tenista, certamente deve ter orgulhado muito os pais, os tios e todos os parentes e amigos que amam o esporte. Mas essa não é uma trajetória que deve ficar restrita apenas à memória dos Hocevar. A coragem e a determinação do jovem de 24 anos devem servir de exemplo para todos os jovens tenistas brasileiros. Nada na vida vem sem riscos e sem decisões que fujam de uma rotina.
Arriscar, embora muitos tenham medo, pode, sim, ser a saída para uma carreira vencedora. Hocevar ainda segue atrás de seus melhores dias, do sonho de entrar no top 100. Se não chegar, pelo menos terá a certeza de que foi atrás dos seus objetivos. Afinal, será que teria sido melhor vencer o Challenger de Salinas?

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