Se há tempos o Brasil não tem um tenista top, ao menos temos alguns brasileiros representando o País nos mais importantes torneios. Nossos árbitros estão entre os melhores do mundo e um deles conseguiu algo "impossível": fazer a final de um Grand Slam
Arnaldo Grizzo em 28 de Maio de 2007 às 08:24
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De quem estamos falando? Carlos Bernardes, um dos principais árbitros de cadeira do mundo, que no US Open 2006 realizou um sonho e se tornou o primeiro sul-americano a arbitrar uma final de Grand Slam. Para se ter idéia do tamanho de sua façanha, em uma entrevista à Revista TÊNIS em 2003, ele afirmou: “Os Grand Slams são eventos da ITF e sou árbitro da ATP. Além disso, eles sempre privilegiam árbitros locais. Fazer uma final é praticamente impossível”. Entretanto, três anos depois, lá estava ele.
Bernardes é um tipo sempre sorridente e humilde, que adora conversar e contar histórias. Se quando garoto pulava o muro de um clube em São Caetano do Sul para jogar tênis, agora viaja pelo mundo todo vendo de perto os melhores tenistas e conhecendo diversas culturas. Louco por esporte, por pouco não se tornou apenas mais um professor de tênis, mas escolheu ser juiz, profissão com que muito poucos conseguem sobreviver. Atualmente ele é um dos 15 árbitros Gold Badge, ou seja, de grau máximo da ATP (são quatro os níveis de juízes: White, Bronze, Silver e Gold) e representa, com orgulho, o Brasil nos maiores torneios.
Há três anos, você me disse que fazer uma final de Grand Slam era um sonho impossível. E agora? Como explica?
O impossível aconteceu. O que aconteceu nos Estados Unidos foi especial. Na terça-feira o chefe de árbitros me chamou e perguntou quando era meu último dia. Disse que meu vôo estava marcado para quinta. “Marca seu vôo pra segunda-feira”. Até aí, eu não sabia de nada. Falei: “Putz, o que será que eu vou fazer? Uma dupla?” Nem imaginava. Na quinta de manhã eles me chamam de novo. O chefe dos juízes falou: “A gente está com um problema. Tem dois americanos, um em cada parte da chave, Blake e Roddick. A gente não sabe o que vai acontecer, então, você vai fazer a final, domingo”. Fiquei olhando pra ele assim: “Como é que é?” Aquilo foi um baque grande, porque, como tinha falado para você, as chances de acontecer seriam menos que zero. Antes disso, alguns juízes que estavam lá brincaram: “Você vai fazer a final”. E eu: “Vocês estão loucos”. “Vamos apostar?” Apostei que ficaria de empregado deles por três dias na Austrália, fazendo qualquer coisa. Aí, putz... Saí da sala e encontrei um deles logo de cara. Só falei assim: “Perdi a aposta...” Até aí ninguém sabia. Avisei todo mundo, a família. Fiquei muito emocionado. É um sonho e você não espera que vá acontecer assim, de repente. E desde o primeiro dia do US Open foi legal. Fiz o primeiro jogo do Agassi. Ele entrou na quadra chorando, emocionado com a recepção do publico. De arrepiar. E foi um torneio tranqüilo, gostoso, até chegar nesse ápice.No domingo, fui pra lá às 11h. O jogo era às 19h. Teve uma reunião na sala do árbitro para explicar como é o esquema da final, porque é tudo diferente. O jogo foi tranqüilo. Acabou, eu ia sair com as bolas e o referee falou: “Fica aqui. Você merece ver a cerimônia da quadra”. É espetacular. Voltei pra levar as bolas, de repente, entra o Tiger Woods, vem na minha direção e diz: “Bom jogo”. Ele tirou uma foto e assinou a bolinha. Foi um sonho. É uma coisa de anos, que você trabalha e, de repente, acontece e você não está esperando.
Como começou sua relação com o tênis?
Eu e um amigo, Heraldo, pulávamos o muro do Lauro Gomes, pra jogar tênis, porque a gente não fazia parte da escolinha. Eles guardavam a rede, a gente colocava um cavalete de atletismo no meio da quadra. Vira e mexe a gente ia embora e esquecia. Então chovia e o cavalete afundava. Jogamos vários meses e um dia a mulher encarregada esperou a gente e falou: “Porque vocês não vêm jogar aqui normalmente?” E a gente foi. Eu continuei, ele parou logo. Tinha 12, 13 anos. Quando meu pai faleceu, eu tinha 16 e comecei a dar aula. O tênis mudou tudo. Lembro daqueles jogos de Wimbledon, de Borg e McEnroe e, de repente, você está em Wimbledon, naquela quadra que você vê na televisão, fazendo um jogo na central. É um negócio que mexe com a gente. Cada profissão tem uma coisa que você fala: “Isso seria um sonho”. E cada hora você vai dando um passinho e vai cumprindo uma parte daquele seu sonho. O tênis mudou minha vida definitivamente.
"Cada profissão tem uma coisa que você fala: ‘Isso seria um sonho’. E cada hora você vai dando um passinho e vai cumprindo uma parte daquele seu sonho. O tênis mudou minha vida definitivamente"
De onde veio a idéia de ser árbitro?
Não sei. Eu dava aula em clube e na APM de Tênis. Aí a Cássia Lorenzini (coordenadora) chegou e falou: “Você tem que decidir, porque está viajando muito (como árbitro)”. E eu adorava dar aula. Foi um momento difícil porque tinha estabilidade e ia pegar uma coisa que não tinha a mínima idéia no que ia dar. E os caminhos foram sendo abertos por pessoas como a Joyce Segal, uma americana que veio pro Brasil fazer um torneio em Itaparica. Ela viu seis juízes aqui, gostou e levou a gente pra fazer o Lipton (Masters Series de Miami). Nós fomos os primeiros a sair em grupo pra lá. No ano seguinte, eu e o Adão (Chagas) fomos os primeiros estrangeiros, junto com outros três, a fazer as finais do Lipton, que era uma coisa inédita. Tanto que quando a gente viu o nome na lista, muitos dos americanos não falavam mais com a gente. Ficaram com raiva. E nós recebemos convite pra fazer o US Open. As portas foram se abrindo. Quando a ATP se separou da ITF a gente acabou ganhando mais espaço.
Como era no começo?
Na primeira viagem pra Miami a gente alugou um carro, foi pra Disney e gastou todo o dinheiro lá. Nosso quarto parecia um shopping.A gente brigava com as crianças pra tirar foto com Mickey, Pateta. Foi muito legal. Hoje, voltando no tempo, a gente nunca imaginava que ia chegar onde está. Isso era 1992, já são 15 anos. Nessa época a gente fazia um ou dois jogos de cadeira no quali e o resto era só linha. Eles te pagavam uma grana por dia, mas não te davam ajuda de custo pra passagem aérea, hotel e alimentação. Então a gente ficava em seis num quarto pra economizar. Nessas primeiras viagens a gente empatou ou perdeu dinheiro. Mas era a única forma. A primeira vez que viajei pra Campos do Jordão, eu arrumava minha cama no hotel. Nunca tinha viajado.
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Antes da final do US Open, você já tinha feito final na Masters Cup em 2002...
Foi minha primeira final de Masters Cup e ter essa honra foi bem legal. São torneios especiais. Você está ali com os melhores, todo jogo é uma final. Tem outros jogos importantes, mas esse é o que fica na cabeça de todo mundo porque é a final. Mas depois de tantos anos, você acaba se acostumando que nem sempre os melhores jogos são as finais. Às vezes, tem jogos inesquecíveis na primeira rodada. E hoje, com muito mais maturidade, não tem aquela coisa de ficar preocupado de quem vai fazer a final. Hoje você quer fazer um bom jogo. Final ou não, não faz diferença.
Quais jogos você guarda na memória?
Em termos de emoção, dois são muito especiais. Um é o Agassi e o Blake em 2005, quartas-de-final do US Open. Eram dois americanos e havia juízes americanos para fazer a partida, mas quando me deram a chance já foi algo espetacular. E depois a partida em si foi uma coisa de arrepiar. Um jogo de quatro horas e os jogadores não falaram nada, não teve nada. E, além desse, teve um jogo do Becker, quando ele estava voltando, em Split, na Croácia, contra o Ivanisevic, na segunda rodada. O Becker era um dos poucos jogadores com carisma ainda naquela época e o Goran, em casa, era um deus. E foi um jogo espetacular, com dois tiebreaks de arrepiar. Tinha seis mil pessoas, parecia um jogo de futebol. O Goran ganhou, mas foi uma coisa espetacular. Foram dois jogos que me marcaram, mas têm outros. Jogos assim você não esquece.
Eu fiz uma brincadeira uma vez e eles (câmeras) gostaram. Aí toda hora me pediam: “Põe o pé”. E eles sempre falam: “Qualquer dia escreve alguma coisa embaixo”. A gente faz amizade com o pessoal da televisão e eles sempre pedem algumas coisas para os juízes. O Mohamed (Lahyani) falava um negócio. O Lars (Graff) mostrava o polegar. Cada um tinha uma assinatura. E eu colocava o pé na câmera pra ele não me filmar. Aí eles gostaram e pediam. Eles querem algo diferente. Mas foi só de brincadeira.
Qual é o próximo sonho?
Sei lá, fiz uma semifinal de Copa Davis em 2005, entre Argentina e Eslováquia. E já foi uma coisa espetacular por não ser árbitro da ITF. Mas gostaria de fazer uma final de Copa Davis, outra final de Grand Slam, de repente, sei lá, Wimbledon, Roland Garros. Tenho esse sonho. Se pintar, vou estar muito contente, mas gosto de fazer jogos bons. Gosto daquele jogo que você vai indo pra quadra e te dá frio na barriga. Sendo jogo bom,não importa o jogador, acho legal. Sei admirar uma partida bem jogada. Viro um torcedor. E geralmente a gente não pode, pois está na cadeira. Você sente todo aquele prazer, aquela emoção da jogada e você não pode se manifestar. Ali é o melhor lugar para assistir o jogo. Ali você sabe como o cara está se sentindo. E esse é um negócio que quem está fora não percebe.
Como vê o hawk-eye?
É uma coisa que foi boa pra televisão, pro publico, os jogadores gostaram. Mas, se você não é um top e não está na quadra principal, não vai ter direito de usar. Essa é uma desvantagem. Não tem nada de a favor ou contra. Acho que eles estão tentando fazer alguma coisa a mais para o tênis. Funcionou? Funcionou bastante.
Quantas milhas já acumulou?
Isso é um caso triste agora, porque trocou a companhia. A gente tem que voar com Star Aliance e sempre voou com American Airlines. E tem que começar do zero de novo. Com a American acumulei 3,5 milhões de milhas.
Essa vida de viagens constantes incomoda?
Depende de como você encara. Pra um jogador é complicado. Nós vamos do começo ao fim do torneio, é uma rotina, um trabalho de segunda a segunda. O que cansa mais são os trechos em aeroportos, aviões, hotel. Aí, chega o fim do ano e você quer descansar, mas a família quer viajar... Não tem como falar não. Já tive situações em que fiquei dois meses fora, estava voltando pra casa, cheguei ao aeroporto e minha esposa falou: “Amanhã a gente vai pra Nova York”. “Como é que é?” “É, a gente vai passar uma semana lá”. “Por que não avisou que eu já ficava por lá e a gente se encontrava por lá?”
Bernardes com a filha, Anna Luiza, em uma de suas muitas viagens |
Sua mulher e sua filha entendem bem isso?
A gente está junto desde os meus primeiros torneios. São mais de 15 anos de casado. E ela foi sempre junto comigo. Tem muitos juízes que têm namoradas que não entendem e começam a cobrar, é complicado. Mas hoje tem internet, a gente se fala, se vê nos vídeos, mando fotos, dá uma aliviada. E quando está em casa, você tem 24 horas. Então, faz coisas que uma pessoa normal não pode, como ir ao parque com a filha de manhã. Minha filha já viajou para vários países, com oito anos. É gostoso ver que você pode passar isso pra eles. Esse lado ajuda bastante nessa compensação. É difícil com os amigos de casa e mesmo com mãe, irmã. Às vezes fico sem ver minha irmã durante seis meses. Quando você volta pra casa, quer ficar dentro de casa. Não é nem na cidade, é dentro da sua casa. Fazendo nada. Sabe as coisas mais simples? Coisas que você sente falta...
Você conhece muita gente famosa?
É um negócio interessante, mas você tem que saber que não é o mundo real. O seu mundo é tranqüilo, em São Caetano. Aqui é outra coisa. Você tem um carro em casa. O resto do ano você anda de Mercedez, fica nos melhores hotéis do mundo, avião pra tudo quanto é lugar. Se paro com o tênis, isso não vai ser assim sempre. Você tem que usufruir das coisas, mas sabendo que aquilo não é o mundo real. Tem muita gente que não consegue. Acha que é o rei da cocada e não é assim. Não é o nosso mundo, infelizmente ou felizmente.
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Me sinto um pouco chateado. Primeiro porque a gente teve essa fase do Guga, que não foi aproveitada, não surgiram outros valores, não foi criado nenhum esquema de treinamento, não foi feito nada e continua do mesmo jeito. É uma coisa triste. Falta um Nuzman no nosso tênis. Falta alguém ter uma mão forte. Falta vontade. Fico chateado porque gostaria de ver mais 20 Gugas no torneio. A gente não tem ninguém. É duro.
O que a figura do Paulo Pereira representa para você?
O Paulo Pereira sempre mostrou que a gente tem que permanecer unido porque só assim todo mundo ganha. Então essa lição continua até hoje e mostra o quanto a arbitragem no Brasil é boa. Hoje não há torneio e infelizmente também já não há mais jogadores de expressão, mas a gente continua com um bom conceito de arbitragem lá fora. Isso é um pouco do trabalho que ele fez. Ele foi um dos caras que, quando fui relacionado pra fazer a final do US Open, fiz questão de agradecer. Ele mostrou o caminho. E a gente faz isso com os que estão começando. Como todo trabalho, sempre tem concorrência. E a nossa concorrência não é nacional, é no mundo inteiro. E hoje isso é um trabalho que tem muita gente querendo fazer e não tem espaço. Acho que essa forma que o Paulo passou de como trabalhar em conjunto facilita muito porque a gente não tem problema com nenhum juiz no circuito inteiro. Você é reconhecido e até admirado por juízes do mundo inteiro. Acho que isso se deve muito ao Paulo, por ter feito a gente pensar dessa forma.
Não... Acho que muito tem a ver como você age nos lugares. Essa coisa de ser gordo, magro, alto, baixo, negro, japonês, se você põe isso muito na sua cabeça, te atrapalha mais do que se você se considerar uma pessoa normal, como qualquer outra. Você está fazendo um trabalho e tenta fazer o seu melhor, independente da cor. Acho que nunca me deram ou deixaram de me dar um jogo por causa da cor. Acho que eles vêem se tenho competência ou não pra fazer. Não se tenho a cor ou se tenho a nacionalidade... Também sou sul-americano. Se você considerar que nós somos sempre tratados como terceiro mundo, se você entra com esse tipo de espírito, eles vão te tratar como terceiro mundo. Muita gente não tem idéia dos nossos países, de como vivemos, porque não conhece a gente. Eles conhecem o noticiário que mostra o garoto sendo arrastado por um bando de marginais na rua, mas desconhecem que aqui tem um povo maravilhoso. Mesmo com toda a politicagem, nosso país é um dos melhores pra se viver. Acho que a gente tem que mostrar isso, essa alegria, esse companheirismo. Pessoas que são de países considerados frios, elas mudam. Você conhece pessoas que te dão a mão e percebe que ela não te deixa aproximar. Mas isso é o primeiro contato. Depois, você volta ao mesmo lugar, elas vêm e te dão um beijo. Na Itália, na Rússia ou na Argentina, você anda na rua, as pessoas te param e te dão um beijo. É um costume deles, entre eles: argentinos, russos ou italianos, e isso significa que você está introduzido nesse costume porque as pessoas te consideram muito. Acho que isso é uma coisa que não tem a ver com a minha cor ou porque sou um juiz de cadeira. As pessoas gostam de você. Elas aprendem o seu modo de ser. Nem a cor e nem o fato de ser sul-americano nunca me atrapalharam.
CARLOS ALBERTO BERNARDES JUNIOR | ||
42 anos (16 como juiz de cadeira) FAMÍLIA ÍDOLOS PARTIDAS FEITAS |