Por trás do mito da superioridade argentina, existem fatores circunstanciais e reais facilitadores do desenvolvimento da modalidade no país vizinho
Elson Longo em 19 de Abril de 2010 às 07:26
O SUCESSO do tênis argentino é inegável. Nas últimas décadas, a Argentina contou com jogadores no top 10 e nos pódios de Grand Slams. Contudo, devemos ser cautelosos quanto à real atribuição destes êxitos. Após 500 anos de todas as formas de colonialismo, das relações políticas laborais e da domesticação de nossa consciência cultural, nossa tênue identidade nacional brasileira careceu de regras. Desde nossas origens, reverenciamos o que vinha do além mar, compramos sonhos que nunca foram nossos e cedemos nosso capital ideológico. Enquanto olhávamos com tanta admiração para o que vinha de fora, esquecemos da nossa própria estima.
Quando nos voltamos para os louros do tênis argentino, este passado cultural esculpe a lente do olhar, e acabamos acreditando que seus triunfos advêm de jogadores mais "raçudos", mais determinados, mais comprometidos (há quem vá mais longe e diga que brasileiro é vagabundo). Após a repetição desta tese ad nauseam, ela se transforma no mito argentino, segundo o qual os hermanos ganham porque têm raça e os brasileiros perdem porque não se esforçam. E, mais uma vez, deixamos a bandeira em casa.
Se hoje o tênis argentino está em melhores condições, isso absolutamente não está relacionado a algum tipo de superioridade, seja ela étnica, racial ou moral. Nossos vizinhos possuem fatores circunstanciais que auxiliaram enormemente o seu desenvolvimento. Estes elementos são os reais responsáveis pelas diferenças de rendimento - e não nossas supostas carências de virtudes, como durante tantos anos nos fizeram acreditar.
FATOR 1: PROXIMIDADE
Buenos Aires é uma cidade intrigante. Recortada em forma de pentágono por duas autopistas, costuma ser dividida em capital e província. Dois mundos completamente diferentes. Enquanto a capital é a tradução de bom gosto de uma bela cidade europeia, a província relembra rapidamente qualquer cidade latino-americana com seus problemas e aparências. Por mais que se viaje pela Argentina, nada se assemelhará à "Capital Federal". Mesmo as capitais de outros estados importantes do país não trazem nem de longe a estrutura encontrada em Buenos Aires.
A consequência disso é a centralização. Muitas atividades, setores e a própria frente de desenvolvimento está centrada no berço "porteño". Com o tênis não é diferente. Existem alguns focos de treinamento fora de Buenos Aires, mas são eventos isolados e não representativos numericamente. O tênis competitivo argentino está amplamente confinado nos bairros da capital. Grande parte dos jogadores, torneios, eventos, clubes, estão num só local, na mesma cidade.
Esta é a primeira grande vantagem da Argentina. Esta proximidade gera uma base ótima para o desenvolvimento em todos os níveis. Enquanto no Brasil tudo se encontra espalhado em um bloco continental, os "hermanos" tomam um simples ônibus para competir, treinar com jogadores diferentes e ir de academia em academia, de clube a clube. Conseguir ter num mesmo espaço os melhores jogadores, treinadores e eventos é certeza de desenvolvimento rápido.
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FATOR 2: AMBIENTE
Às margens do Rio da Prata, Buenos Aires está no nível do mar e não é raro dias com 100% de umidade. As quadras são de pó de tijolo. É o piso mais lento que há. E isso, associado às condições de pressão e atmosfera locais, forma a configuração mais lenta possível existente no planeta. É evidente que isso trará consequências táticas no jogo dos argentinos.
Portanto, os jogadores devem lutar continuamente com essa lentidão e acabam desenvolvendo muita potência nos golpes ao longo do tempo. Preparações amplas, força física e boa utilização dos segmentos do corpo acabam sendo o resultado final desse tipo de entorno.
Como os pontos são mais longos, resistência e paciência são fundamentais. Os treinadores argentinos insistem muito no momento correto das mudanças de direções dos golpes (os "cambios"), ou seja, de bater uma paralela quando se está numa troca de cruzadas. Sabemos que quando executamos uma paralela, o adversário enxerga uma boa possibilidade de contra-ataque cruzado, caso chegue bem na bola. E isso não é difícil em Buenos Aires. Com as características lentas da quadra, o rival tem um tempo extra para se acomodar, o que torna os "cambios" uma ação cautelosa.
Nesse contexto, ter uma boa movimentação é tão eficiente quanto ter potência. Suponha jogadores desenvolvidos em pisos ultrarrápidos, como quadras sintéticas cobertas, por exemplo. Os pontos são extremamente curtos, a quadra potencializa a velocidade dos tiros. As possibilidades de defesa são menores e atacar é a regra. O produto final de jogadores desenvolvidos nestas condições será bem diferente.
Características "inerentes" e sistema de treino
Isso explica a maneira tão padronizada de jogar dos argentinos.O tempo extra concede amplitude e completude aos golpes, que, com o tempo, traduz-se em potência. Possibilita êxito maior nas movimentações, pois as condições auxiliam o defensor e, quem muito se defende, desenvolve velocidade com o tempo. Os pontos são mais longos, logo, resistência, concentração e dureza mental são amplamente desenvolvidas.
O sistema de treinamento foi adaptado a essas condições. Se todos acabam seguindo a mesma maneira tática de jogar, não seria diferente com o treinamento que se encontra uniformemente apoiado em longas sequências de golpes de fundo em diversas combinações. As características externas forjaram um padrão de jogo, um padrão de treino e, finalmente, uma filosofia de trabalho e competição.
Isso explica a tal "raça" dos argentinos. A "raça" é o combustível mental que qualquer jogador desenvolve sendo treinado sob estas condições, definidas com pontos longos, rebatendo inúmeras bolas todos os dias contra alguém que também faz a mesma coisa.
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Diferença brasileira e influências
No Brasil temos incontáveis tipos de clima, altura, piso e cultura. Não há um padrão. As condições externas são extremamente amplas. Aqui, não estamos todos no mesmo lugar, do mesmo jeito, fazendo a mesma coisa. Isso explica a diversidade de nossos padrões de jogo, de treinamento e de filosofia de trabalho.
A Argentina, com seu padrão bem definido, encontrou espelho no sistema espanhol para receber suas influências. Por aqui, tivemos muita influência norteamericana até os anos 1980 e depois de outras escolas, como da própria Argentina, Espanha e da Federação Internacional através da capacitação de professores. Essa miscelânea de padrões e condições obviamente dificulta o desenvolvimento, pois impede ou dificulta a implantação de um sistema nacional de treinamento.
FATOR 3: FACILIDADES E COMPETITIVIDADE
Buenos Aires possui incontáveis quadras de tênis. O interessante é como elas estão organizadas. A maioria está nos clubes. E aí surge uma diferença marcante. Quando pensamos em clube, imaginamos o modelo de clube do Brasil, com piscina, quadras poliesportivas e muitas outras coisas. Isso também existe por lá, mas é uma minoria.
Os clubes argentinos, em sua marioria, são pequenos, possuem de três a seis quadras de tênis, um restaurante-café e talvez algum lugar para a churrasqueira. Nesta estrutura diminuta, esses locais alugam as quadras para os treinadores de tênis com seus grupos de jogadores. Sendo assim, quase sempre o técnico argentino é autônomo e depende de realizar um bom trabalho para ter seus alunos num local onde a concorrência é duríssima, como pode-se depreender.
As características externas forjaram um padrão de jogo, um padrão de treino e, finalmente, uma filosofia de trabalho e competição
No Brasil, os clubes, na maioria das vezes, contratam os treinadores e professores. Como tudo é muito espalhado, a concorrência é menor. O professor não depende tanto de seus resultados para ter seus rendimentos e isso, muitas vezes, gera zonas de conforto e menor produtividade. Novamente surge o mito que treinador brasileiro é "sossegado". Mentira, a organização é diferente: o sistema (frequentemente) paternalista dos clubes e a falta de concorrência geram uma maior apatia. Esta é uma resposta humana, natural. Conheci treinadores na Argentina que eram contratados de clubes e se notavam os mesmos padrões que notamos por aqui.
FATOR 4: EX-PROFISSIONAIS
Outro elemento interessante na organização diz respeito às subcontratações. Como os treinadores devem alugar quadras, e a concorrência é muito grande, são poucos aqueles que conseguem contratar treinadores para trabalharem. Mesmo porque há uma tendência de eles serem autônomos. No entanto, alguns técnicos de destaque acabam tendo que admitir ajudantes. E estes ajudantes acabam sendo ex-jogadores que quase sempre deixaram o circuito há pouco tempo.
Por aqui, a subcontratação é mais usual pela presença do boleiro. Os pegadores de bola se tornam rebatedores e, em seguida, formam um contingente de mão-de-obra de fácil contratação. Isso estimula o aparecimento de estruturas com pouco contato direto entre o treinador principal e seus alunos. Ao passo que, na Argentina, esse processo é mais humanizado e o treinador está mais presente.
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Com certeza, os treinadores argentinos seriam mais empresariais se tivessem as facilidades que temos aqui, mas, como o custo e a mão-de-obra é mais cara, o treinamento acaba mantendo moldes mais artesanais. Isso constitui mais uma vantagem, pois a relação treinador-jogador acaba tendo maiores proximidades e são menos terceirizadas.
FATOR 5: CIRCUITOS INTERNOS
Em relação aos torneios, a maior vantagem está na transição de juvenil para profissional, que sabemos ser crítica. Quem está em transição já joga em um bom nível e, portanto, é redundante dizer que, em sua maioria, estão na capital. Com esse enorme contingente de jogadores, há um circuito com prêmios em dinheiro semanal. Os jogos da semifinal e da final são transmitidos em cadeia nacional.
Isso mantém os jogadores em atividade e competição, sem terem que se deslocar de um lugar a outro. O nível é bem alto e não difere de qualquer Future que temos na América do Sul. Com frequência de jogos, boa competitividade e baixo custo, isso impulsiona enormemente a continuidade do desenvolvimento desses jogadores. Esse é um período delicado, que quase sempre esbarra em questões financeiras e em escassez de torneios.
Com tantos ventos a favor, é natural que o tênis argentino se desenvolva mais rápido. Temos quase sempre que remar muito contra distâncias, diferenças e características menos favoráveis. Mas, mesmo assim, tivemos um número um do mundo. Ele mostrou que é possível, que temos valor e que podemos. Existem diferenças, mas não desigualdades.
A diferença entre os tenistas brasileiros e argentinos não é a "raça", mas diversos fatores que moldam a maneira como nossas escolas se desenvolvem