Entenda como funciona o controle antidoping e como os atletas devem se prevenir para não serem pegos por tomar medicamentos que contenham substâncias proibidas
José Eduardo Aguiar em 24 de Agosto de 2009 às 12:00
Um momento de diversão, de descontração. Um momento em que pensava apenas em afastar um pouco sua mente das quadras. Um simples beijo em uma garota desconhecida. Esta foi a justificativa dada por Richard Gasquet, pego no exame antidoping durante o torneio de Miami por uso de cocaína. A desculpa, um tanto quanto polêmica, não colou para a maioria dos especialistas, porém, para a ITF, bastou para punir o francês com apenas dois meses de suspensão. Simpático, educado, fama de "bom moço". Tudo apontava para uma pena extensa, dois anos longe das quadras. Mas o histórico e a receptividade de Gasquet pesaram para abrandar sua pena. Martina Hingis, que cansou de se envolver em polêmicas, que - apesar de ser reconhecidamente uma das mais talentosas de todos os tempos - não fazia o mínimo esforço para ter um bom relacionamento com os membros da WTA e da ITF, teve exame parecido diagnosticado em 2007. Porém, no caso da suíça, não teve perdão: teria que passar dois anos longe das quadras. Indignada, declarando-se inocente, não teve paciência para advogados e julgamentos. Preferiu pôr fim, mais uma vez, à sua vitoriosa carreira.
Com a reputação colocada em cheque, a suposta paquera de Gasquet veio a público e negou ter consumido a droga. Prometeu processar o francês, que dissera ter contraído a substância pela saliva da moça. Quem falou a verdade? Quem consumiu a droga? Se, por ventura, fosse Gasquet que a tivesse usado, estaria ele querendo se beneficiar dos efeitos para melhorar seu rendimento em quadra? Essas questões, e muitas outras, jamais serão respondidas. Porém, o polêmico, e até engraçado caso (devido à justificativa inusitada), reascendeu a discussão do doping no esporte e, mais especificamente, no tênis.
De Adão aos superatletas
Com o avanço da tecnologia e da ciência, novas substâncias são descobertas a cada dia, a cada hora. Em um mundo cada vez mais globalizado, em que uma simples vitória pode render milhões de dólares a um esportista, cada vez mais e mais métodos surgem para tornar simples mortais em verdadeiros super-heróis. Diante desse quadro, poderíamos imaginar que a questão do doping é algo recente. Ledo engano.
Há quem diga, inclusive, que o primeiro caso de doping aconteceu no Jardim do Éden. Quando Eva, instigada pela cobra, oferece a Adão a maçã proibida e afirma a ele que, se comesse, poderia se tornar tão forte e poderoso quanto Deus. Porém, assim como o Todo Poderoso havia os aconselhado, estava-se quebrando uma regra ética pela primeira vez na história da humanidade.
Para os que não acreditam nesta teoria da criação, vamos então ao ano de 2.737 a.C, quando o imperador chinês Shen-Nung já conhecia os efeitos estimulantes da infusão de "machuang", uma folha que contém altas concentrações de efedrina. A droga era utilizada para aumentar a capacidade de trabalho, e passou a ser muito usada nas grandes construções.
Mais "recentemente", de acordo com relatos de Philostratus e Galeno, começam a surgir os primeiros casos de doping na história do esporte. Já nos Jogos Olímpicos da Antiguidade, iniciados em 776 a.C, os atletas bebiam chás de diversas ervas e comiam certos tipos de cogumelos para aumentar seu rendimento nas competições.
Daí em diante, a busca por substâncias que pudessem aumentar o desempenho dos seres humanos, talvez dispostos a ter a força e o poder dos deuses, aumentou. Durante milhares de anos, vários documentos tentam provar o surgimento de novas técnicas desse tipo, mas nada que pudéssemos tomar como verdade absoluta. O que podemos afirmar e analisar, com certeza e comprovadamente, surge no final do século XIX, quando o esporte começa a ser organizado de forma internacional.
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Um renomado alquimista da ilha mediterrânea de Córsega, conhecido como Mariani, produziu um vinho com folhas de coca que se tornou bastante popular entre os ciclistas da época. Já em 1896, data dos primeiros Jogos Olímpicos da Idade Moderna, em Atenas, sabe-se que os atletas já conheciam e dominavam técnicas para o uso de estimulantes - particularmente a cocaína, efedrina e a estriquinina - e as utilizavam em forma de pequenas esferas, chamadas de "bolinhas". Assim, fica fácil entender de onde surgem expressões muito usadas hoje em dia, como "tomar bola" e "bolado".
Petr Korda |
Quando a política entra no esporte
Se por si só alguns atletas já usavam substâncias que melhoravam seus desempenhos e os faziam ganhar vantagens sobre os adversários, quando a política e o esporte se misturavam, essa prática se tornava ainda mais comum. O primeiro líder a usar o esporte como instrumento para promover suas idéias foi Adolf Hitler nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Embora tenha visto sua defesa da supremacia da raça ariana ir por terra com as quatro medalhas de ouro conquistadas pelo negro norte-americano Jesse Owens - em pleno Estádio Olímpico e em frente às tribunas onde se encontrava o ditador -,
Guillermo Coria |
Hitler foi acusado de dar uma série de substâncias anabolizantes a seus atletas.
Como, na época, a maioria dos esportistas do país eram ex-soldados de guerra, os jovens levavam aos estádios os conhecimentos de algumas substâncias, como a anfetamina e o anabólico esteroide, usadas para melhorar a capacidade de combate de pilotos durante as batalhas. Daí em diante, o doping sempre esteve presente nas principais competições esportivas e sempre gerou muita discussão.
Mariano Puerta |
No tênis, diversos casos marcaram época e inclusive mancharam ou acabaram com a carreira de promissores jogadores. Campeão do Aberto da Austrália e ex-número dois do mundo, o tcheco Petr Korda foi um deles, sendo flagrado, em 1999, por uso de nandrolona - uma substância anabolizante que aumenta a força dos atletas. Mesma substância que atrapalhou a carreira do "Mago" argentino Guillermo Coria, que ficou suspenso por sete meses em 2002 e depois processou a empresa que lhe fornecia suplementos vitamínicos. Outros casos como o dos também argentinos Juan Ignacio Chela, Mariano Puerta e Guillermo Cañas, além do francês Nicolas Escude e de muitos outros marcaram uma série de discussões sobre o uso de substâncias no tênis.
A busca pela legitimidade
Em sua definição oficial, a Agência Mundial Antidoping (da sigla em inglês WADA; mais utilizada) afirma que é "considerado como doping a utilização de substâncias ou métodos capazes de aumentar artificialmente o desempenho esportivo, sejam eles potencialmente prejudiciais à saúde do atleta ou a de seus adversários, ou contrário ao espírito do jogo". Porém, parece claro que a grande discussão a respeito desse polêmico assunto é quanto à ética.
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Responsável pelo Laboratório de Análises Toxicológicas da FCF/USP , o Prof. Dr. Mauricio Yonamine defende um sistema rigoroso para avaliar os atletas. "O controle antidoping defende a ética esportiva e médica, protege a saúde dos atletas e ainda garante chances iguais para todos nas competições", acredita o professor, que também é responsável pela área de doping da Federação Paulista de Futebol.
Outro que defende a mesma tese é o Dr. Gilbert Bang, especialista em Medicina Esportiva e que trabalha com tenistas profissionais há muitos anos. Sempre atualizado, o médico explica como são realizados os exames na modalidade. "Podem ser feitos durante as competições ou fora delas. No caso de testes fora de competições, o atleta não é notificado e pode ser feito em qualquer local e horário, justamente para garantir a prática esportiva limpa, justa e saudável", defende.
Após o exame, a amostra é simultaneamente encaminhada para a ITF e para a WADA. A partir daí, a WADA só acompanha e a Federação conduz o caso. "O procedimento é sempre realizado com o acompanhamento de um membro autorizado e de uma testemunha", lembra Bang.
Burlando o sistema
Richard Gasquet e Martina Hingis foram pegos por suposto uso de cocaína |
Embora os órgãos responsáveis trabalhem a cada dia para melhorar e tornar mais eficazes os procedimentos para controlar os atletas, cada vez mais surgem laboratórios que trabalham contra a ética e a legitimidade do esporte. Dotados de impressionante tecnologia, fornecem, a técnicos e atletas dispostos a se dopar, substâncias ainda desconhecidas pelas entidades. Além disso, os custos para realizar exames e controle é grande, o que impossibilita que testes eficazes sejam realizados em todos os tipos de competição. "Contar com a sorte pode ser uma tentativa de o atleta burlar o sistema e, dependendo do nível de competição, isso é fácil e possível. Somente em grandes eventos esportivos que tenham recursos para realizar os exames é que teremos um bom controle antidoping", afirma Bang, que trabalha com tenistas juvenis e está acostumado a viajar para torneios menores.
Existe uma série de substâncias que são consideradas ilegais, e essa lista contém nomes e mais nomes, todos de desconhecimento do grande público. Porém, não é preciso ser especialista para saber que as drogas mais utilizadas são os anabolizantes. "Eles deixam os atletas mais fortes e resistentes, além de oferecer resultados impressionantes nos treinamentos", revela Yonamine, lembrando de casos frequentes na natação e no atletismo.
No tênis, não é diferente. Com o jogo se tornando cada vez mais físico, em detrimento da técnica, os tenistas são obrigados a se adaptar ao estilo e se tornar cada vez mais fortes. Aconselhados por pessoas de má índole, alguns garotos abusam do uso de anabolizantes e outras substâncias, já que sabem que não serão pegos nos torneios juvenis e de menor expressão. "No mundo dos Futures, já ouvi falar de alguns garotos que usam efedrina para retardar a fadiga e assim melhorar o desempenho", recorda Bang. "Raramente os atletas que jogam Futures estão preocupados com o teste antidoping. Já quando passam ao nível Challenger, começam a ficar mais atentos".
Porém, além de serem caros e só serem possíveis em torneios grandes, esses exames são 100% confiáveis? O Dr. Rogério Teixeira, médico da CBT, lamenta que não. "Não existe exame 100% confiável em nada que fazemos na medicina. Pode haver falhas, sim, e muitos atletas já foram punidos sem terem realmente se dopado", afirma o médico, dando razão a algumas reclamações. Porém, garante que o programa antidoping é extremamente necessário "para que as disputas entre atletas sejam somente deixadas no campo ou na quadra, e não no laboratório".
As polêmicas drogas sociais
Sabemos que as substâncias mais procuradas por atletas que desejam melhorar seu rendimento nas competições são aquelas que aumentam a força e a resistência, como os esteroides, por exemplo. Porém, quando ouvimos dizer que um atleta foi pego por uso de drogas como cocaína ou maconha, logo uma inquietante dúvida vem às nossas cabeças. Mas essas drogas não pioram o desempenho? O caso mais discutido é a maconha, que só foi oficializada como doping em 1989. De efeitos conhecidos, relaxantes, ela, na prática, prejudica o desempenho de um atleta. "A maconha é um tema muito controverso, pois teoricamente não aumentaria em nada o rendimento esportivo, para a maioria dos esportes. Mas as agências de controle também consideram o atleta um exemplo de saúde e acham interessante que os esportistas sejam esses exemplos", afirma Rogério Teixeira. "Não só ela (a maconha), como muitas outras dessas drogas, diminuem a capacidade de atenção e concentração do atleta; interferindo, então, no desempenho esportivo", analisa Bang. "Quando essas drogas são detectadas, não acredito que a intenção do atleta seja se beneficiar de um suposto efeito de aumento de desempenho", acredita Yonamine, que pensa "que assim como qualquer pessoa, o atleta também está sujeito aos problemas de uma sociedade". A verdade é que, estimulante ou não, as "drogas sociais" sempre repercutem muito mais na mídia. Em alguns casos, o atleta jamais volta a ter o mesmo sucesso e sofre com uma série de preconceitos.
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Para Bang, que gerencia a carreira de alguns tenistas, os responsáveis pelos atletas têm que interferir nessa delicada hora. "Cabe à sua equipe de gestão administrar a situação, mas claro que o doping sempre ficará marcado em sua carreira". A verdade é que, mesmo que seja provada a inocência, o preconceito sempre vai existir em relação ao atleta acusado. Além de interromper a preparação realizada na época, as investigações geram estresse, gastam dinheiro, causam depressão e, muitas vezes, acabam com uma carreira promissora.
Maurren Maggi, volta por cima |
Como evitar?
No caso de Richard Gasquet, a causa teria sido um corriqueiro beijo em uma garçonete durante uma festa. Já Mariano Puerta jurava ter contraído a substância em um tratamento contra a asma. Marcelo Melo, um dos melhores duplistas da história do tênis brasileiro, também foi pego de forma curiosa em um exame. Rapaz tranquilo, mineiro de origem e personalidade, o "Girafa" tomou a conhecida Neosaldina para curar uma dor de cabeça durante a disputa do torneio de Queen's, em 2007. Porém, não sabia que o popular remédio continha Isometepteno, uma das milhares substâncias proibidas pela WADA. Ficou dois meses suspenso das quadras, além de perder a premiação e os pontos do torneio inglês e do US Open. Outro caso curioso aconteceu com a saltadora Maurren Maggi, que ficou dois anos afastada das pistas. Enquanto não dava a volta a por cima e conquistava o primeiro ouro da história do esporte feminino individual brasileiro em Olimpíadas, Maurren jurava ter contraído a substância após usar um creme pós-depilatório.
Desculpas esfarrapadas ou justificativas contundentes? Não interessa. O importante é que os casos citados mostram a importância de um atleta estar ciente do que pode e não pode consumir. "O atleta profissional tem o dever de saber a regra de doping", alerta Rogério Teixeira. "A primeira coisa que se deve evitar é a automedicação, não só nos esportes quanto no diaa- dia", completa Bang. Então, fica evidente que os esportistas devem sempre procurar um médico responsável para saber se podem ou não tomar um remédio.
Visando evitar este tipo de problema, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) publica anualmente um livreto com todas as substâncias proibidas pela WADA, além de dar dicas e conscientizar os atletas. "Nós, médicos, também devemos sempre estar informados, já que a lista é atualizada ano a ano", afirma Yonanime, que realiza um trabalho de conscientização de atletas junto à Federação Paulista de Futebol.
Se Maurren Magi foi pega usando um creme depilatório e Marcelo Melo tomando um simples remédio para dor de cabeça, logo um atleta já pode se encher de calafrios e ascender velas e mais velas para jamais ficar doente. "Não posso tomar nada, então?", pode pensar. Porém, é claro que o bom senso sempre prevalece. Caso o tenista esteja com algum tipo de problema e precise se medicar, sem que o remédio seja ingerido para trazer alguma melhora a seu desempenho, ele pode encaminhar, com antecedência, uma carta à WADA explicando o caso e pedindo a autorização para tomar a substância. "Deve ser preenchida uma TUE (therapeutic use exemption - uso terapêutico de exceção), que é um formulário que deve ser assinado e carimbado por um médico, dizendo qual a doença e o medicamento solicitado", explica Teixeira.
Portanto, fica evidente que deve ser tomada uma série de cuidados para evitar este tipo de situação. Por mais que alguns atletas aleguem falta de privacidade e reclamem das ações destas entidades, fica claro que o objetivo - embora não tenha como se chegar à perfeição - é manter a legitimidade e a justiça no esporte. Sem entrar em questões religiosas, o exemplo de Adão ficará para a eternidade. Verdade? Lenda? Não importa. O que fica de lição é que todos temos direitos iguais, independentemente de condições financeiras e nações de onde viemos. Assim, em se tratando de competições, é de extrema importância que os resultados venham graças ao talento individual, ao trabalho e à dedicação de cada atleta. Que os superheróis "bolados" fiquem apenas nos seriados de tevê!
Principais substâncias e seus efeitos Estimulantes Anfetamina: São usadas nos esportes para aumentar a resistência, aguçar os reflexos e reduzir a fadiga. Os riscos à saúde dos atletas são consideráveis, dados os inúmeros casos de mortes durante exercícios muito pesados. Entre estes riscos podemos destacar hipertermia e paradas cardíacas, além de causar dependência Cocaína: O mais natural e conhecido estimulante. É muito usada por possuir efeitos eufóricos e diminuir a fadiga. A sua indicação como doping é controversa, já que, apesar de inicialmente dar uma sensação de conforto e energia, após algum tempo torna o seu usuário mais cansado e até depressivo. Efedrina: Usada propositalmente para doping, pode aumentar a potência, a resistência à força e a velocidade. Porém, ela tem alto índice de casos devido à facilidade de encontrá-la em remédios comuns do dia-a-dia - como descongestionantes -, além de suplementos dietéticos e estimulantes energéticos. Mais uma vez, a questão é polêmica, já que a quantidade encontrada nestes remédios e suplementos apresenta melhoras insignificantes no desempenho. Testosterona e Esteroides A testosterona havia sido proibida em 1935, mas, em 1950, foi descoberta que uma versão artificial da droga estava sendo usada para reforçar a musculatura de atletas. Desde então, o esporte tem visto um leque cada vez maior dos chamados esteróides anabólico-androgênicos (AAS , da sigla em inglês).Os AAS melhoram a performance atlética devido aos seus efeitos anabólicos, desde que o atleta também consuma a quantidade necessária de proteína. Entre os efeitos colaterais podemos destacar danos ao fígado e ao coração, distúrbios hormonais (incluindo infertilidade), alterações comportamentais e problemas psicológicos. Nandrolona: É o esteróide anabólico-androgênico mais procurado por atletas que precisam de potência e força muscular. Derivado da testosterona, principal hormônio sexual produzido no homem, tem poderosas propriedades anabolizantes. Entre seus efeitos, acelera o crescimento muscular e aumenta a massa corporal magra, a força e a agressividade. Além disso, é utilizada para a recuperação mais rápida dos treinamentos pesados. Seus efeitos colaterais são perigosos. Eritropoietina (EPO ) e transfusões de sangue Hormônio do crescimento humano (HGH) A sua popularidade é muito grande, já que é uma das substâncias mais eficazes, eficientes, difíceis de detectar e com menos efeitos colaterais. A medida em que os HGH realmente melhoram o desempenho ainda está em debate. Em adultos, que carecem dessas substâncias - já que seu organismo não mais as produz em quantidades suficientes -, a injeção dos hormônios aumenta a massa muscular e diminui a massa gorda. Apresenta, também, efeitos favoráveis sobre a capacidade de exercício, bem como melhoras na função renal e cardíaca. |