Os bastidores do esquema de compra de resultados que ameaça a carreira de jogadores e técnicos
Por Elson Longo em 18 de Janeiro de 2016 às 13:01
Denúncias de fraude voltam a abalar o tênis mundial enquanto o submundo das apostas emerge como pano de fundo para os sistemas de compra de resultado. A polêmica marcou a abertura do Australian Open nesta segunda-feira, mas os bastidores deste bilionário esquema vem sendo investigado há anos.
A relação velada entre apostas e esportes é antiga. Muito se desconfia, pouco se sabe e menos ainda se comenta. São raríssimos os casos de alguém que assumiu alguma responsabilidade. Um deles foi o italiano Alessio di Mauro, que, em 2007, admitiu ter apostado em partidas de tênis, mas não em seus próprios jogos. Ainda assim, ele foi suspenso por nove meses e multado.
No mesmo ano, Novak Djokovic, então número 3 do mundo, admitiu que recebeu uma proposta de 110 mil libras para perder na primeira rodada do ATP de São Petersburgo. No fim, o sérvio sequer participou do torneio.
Até hoje, poucos tenistas foram suspensos por estarem envolvidos com apostas e combinação de resultados. Alguns como o austríaco Daniel Koellerer, o sérvio David Savic e os russos Sergei Krotiouk e Andrey Kumantsov, porém, foram banidos para sempre do esporte devido a relações com partidas pré-combinadas.
No começo de 2015, os italianos Daniele Bracciali e Potito Starace foram suspensos pela federação de seu país por terem sido citados em processos que julgam casos de acerto de resultados nos esportes. E o caso mais recente publicado pela Tennis Integrity Unit (TIU) – entidade criada em 2008 para regulamentar políticas anticorrupção no tênis – é dos tenistas Walter Trusendi, da Itália, e Elie Rousset, da França, que foram suspensos por seis meses por violarem normas do programa anticorrupção. Vale dizer que a TIU foi criada logo após o escândalo que envolveu uma partida de Nikolay Davydenko contra Martín Vassallo Arguello, no torneio de Sopot em 2007. Mais de US$ 7 milhões foram apostados naquela partida em que o russo acabou desistindo no terceiro set. Depois de um ano de investigações, ambos os tenistas foram inocentados.
No entanto, as informações sobre as investigações, suspensões e banimentos são sempre muito poucas e tudo é feito com muita discrição. A TIU, por sinal, reserva-se no direito de não fazer comentários públicos e tampouco divulgar qualquer dado sobre as investigações que resultaram em sansões.
Mas, se há pouca informação sobre os esquemas fraudulentos, pelo menos temos conhecimento das enormes somas de dinheiro envolvidas em apostas esportivas, que vem aumentando significativamente ano após ano. Com o surgimento da internet, a consolidação dos sites de apostas e de resultados esportivos, o negócio deu um salto astronômico, cujo valor estimado atinge a casa dos US$ 335 bilhões (dados de 2010).
Hoje, pode-se apostar em qualquer modalidade, de qualquer lugar do mundo, bastando ter à mão um smarthphone. Isso atrai desde o ingênuo aposentado, que faz sua apostinha no domingo, até verdadeiras organizações dispostas a manipular resultados.
“Courtsiders” estão infiltrados em todos os torneios, inclusive nos menores
Segundo dados apontados pela Federação Internacional de Tênis (ITF), em 2010, as apostas esportivas moveram 40% do montante global anualmente, sendo as online as que mais crescem e os jogos em andamento são o maior atrativo para os apostadores. Em relação ao tênis, a soma envolvida é impressionante: US$ 22.300.000.000. Este assombroso número de onze casas decimais é o valor total estimado de apostas feitas no tênis no ano de 2010. Isso considerando apenas apostas legais.
Estima-se ainda que as casas de apostas faturaram US$ 1.300.000.000 com a modalidade naquele ano. Este valor é mais alto que todos os ingressos financeiros referentes ao tênis: vendas de entradas, direitos de transmissão, patrocínios etc. Para se ter ideia e dar base para comparação, o circuito ATP (incluindo Grand Slams) não chega a distribuir US$ 200 milhões em premiação para os atletas. Claramente, o mundo das apostas é financeiramente muito maior que o próprio esporte.
E segundo levantamentos, o tênis é a segunda modalidade em que mais se aposta no planeta, sendo a que vem crescendo com mais rapidez em número de apostadores. O grande “boom” de apostadores no esporte em geral, e no tênis especificamente, ocorreu no começo dos anos 2000, quando surgiram sites de apostas como Betfair que, além de apontar cotações em determinados jogos, aceitava que seus próprios usuários estabelecessem cotações para qualquer partida, em qualquer torneio, em qualquer lugar do mundo.
Originalmente, as apostas estavam concentradas nos grandes torneios e, tempos atrás, dependiam muito dos “courtsiders”, pessoas que ficavam literalmente “do lado da quadra”, incumbidas de transmitir resultados, placares e as condições dos jogadores, para apostadores, visando melhorar as estatísticas das apostas (veja box).
No entanto, nos últimos 10 anos, houve um crescente interesse dos apostadores em torneios profissionais de menor expressão como Challengers e, principalmente, Futures. Os Futures são torneios de premiação entre US$ 10 mil a 15 mil, que comportam jogadores jovens em ascendência, ou aqueles que estão tentando recuperar ranking, enfim, uma classe de profissionais que está longe do estrelato.
Apostas no tênis superam US$ 20 bilhões, criando um mercado muito mais valioso do que o esporte em si
Até julho de 2013, a ITF não tinha um sistema online de dados, resultados e estatísticas de jogos em seus torneios Future. Por causa disso, a figura do “courtsider” se proliferou. Contudo, logo a entidade compreendeu que precisava criar um sistema para minimizar essas presenças. E claro que a ITF também lucra com isso, pois vende o pacote de dados aos sites que trazem resultados online (muito usados pelos apostadores). O programa, aliás, foi desenvolvido pela Sportradar, empresa que está ligada ao meio de apostas.
E, mais recentemente, no dia 8 de maio deste ano, a ITF tomou outra ação que, indiretamente, ajuda a diminuir a “tentação”: os diretores aprovaram um plano de aumento de premiação dos Futures para os próximos dois anos (veja informação completa na seção Quadras) e também prometem incentivar crescimento do número de torneios para que os atletas que estão começando no profissionalismo tenham mais oportunidades.
Com tanto dinheiro envolvido e uma classe de jogadores tão vulnerável economicamente, existem brechas para o aliciamento. Nos Futures, as premiações são baixas. O campeão ganha menos de US$ 2 mil pelo título. A primeira rodada, então, paga cerca de US$ 200 e dá um único ponto no ranking ATP (ver artigo na página 42). Nesse nível, muitos jogadores ainda não possuem patrocínio e têm altos gastos com hospedagem, transporte aéreo etc. Às vezes, esses tenistas se veem em um beco sem saída, sem recursos para seguir um calendário de competição apropriado. Esse é o cenário ideal para a corrupção de jogadores. O que pouca gente sabe são os valores e os tipos de propostas que são feitas.
CourtsidersAliciadores de tenistas ou mesmo aquelas pessoas que são contratadas apenas para enviar dados das partidas aos apostadores são chamados de “courtsiders”, que literalmente significa “aquele que fica do lado da quadra”. Eles ficam mandando informações online em tempo real para os sites de apostas enquanto as partidas estão em andamento. É extremamente difícil identificá-los, pois se misturam entre a plateia comum. Além disso, é muito difícil pegá-los em flagrante, pois é fácil dissimular a ação. |
O jogador, muitas vezes, é uma vítima de um poderoso sistema financeiro, mas sempre há o livre arbítrio e o poder de dizer não. O maior mal é o aliciador. Seja ele um técnico, um jogador, ou, mais comumente, alguém de fora que conhece os jogadores. Esse personagem é a ponte entre o apostador e o jogo. Ele vai identificar a partida que pode ser fraudada e oferecer valores altos a um ou até mesmo aos dois jogadores envolvidos. Ao mesmo tempo, vai orientar o apostador em como fazer a aposta. Ele também é quem vai pagar o combinado. É a engrenagem principal de todo o esquema. E eles estão presentes em diversos torneios nos mais variados cantos do mundo, pois os apostadores podem escolher fazer acertos em seu próprio país ou no exterior. Por isso, os tenistas devem estar bem orientados e preparados para resistir às abordagens.
Em 2008, foi criada a Tennis Integrity Unit (TIU) para regulamentar políticas anticorrupção
Não vamos citar os nomes das fontes (que falaram sob a condição de anonimato), mesmo sabendo que não existe envolvimento delas com o submundo das apostas, para que não haja qualquer tipo de perseguição ou pré-julgamento.
Entre os jogadores, há uma linha invisível, um limite secreto, um código, em que esse assunto é tratado sempre a portas fechadas e aos sussurros. Há aqueles que fizeram dívidas com gastos de viagem e acabaram sucumbindo às apostas como forma de revitalizar sua situação financeira. Nesse caso, a sensação de frustração é ainda maior. Há também os que foram sendo levados e estão continuamente “vendendo jogo”. Os que chegam a esse ponto seguramente perderam sua identidade esportiva, carecem de princípios e, muitas vezes, acabam tentando aliciar outros jogadores. Já não há mais carreira, sonho ou o porquê de lutar. Servem de engrenagem para um negócio ilícito.
Um jogador revelou que, antes de entrar na quadra, recebeu uma proposta por WhatsApp: “R$ 22 mil para perder o primeiro set”. Ele não respondeu e ganhou em dois sets. Mas, depois disse que ganharia mais perdendo aquele set do que vencendo três torneios daquele nível. Uma verdadeira prova de princípios.
No entanto, os valores podem ser ainda maiores. Já aventou-se somas de R$ 40 mil para se perder um jogo. Mas é muito comum valores menores para se ter o saque quebrado em um game específico, por exemplo. Sim, as apostas podem ser em placares, em que game haverá uma quebra, em quem vai ganhar o próximo ponto etc, e não apenas no vencedor ou perdedor de uma partida.
Um exemplo ocorreu em uma disputa de duplas. “Estávamos ganhando com tranquilidade e, de repente, meu parceiro começou a dar duplas-faltas. Os saques saiam metros. Fomos quebrados no primeiro game do segundo set. Depois, tudo voltou ao normal e ganhamos o jogo. Quando perguntei o que tinha acontecido naquele game, o cara me falou que tinha que ser quebrado ali por conta de uma apostinha. Fiquei revoltado e nunca mais joguei com ele”, desabafou um jogador.
“Recebi propostas no meu celular. Fui à ITF e denunciei. Se todos nós agíssemos assim, seria mais difícil forjar resultados”, esclarece outro tenista que hoje não está competindo por falta de recursos. “Estou jogando torneios de grana, assim junto um dinheiro para tentar jogar no segundo semestre. Prefiro fazer isso do que entregar jogo e alimentar esse esquema. Mas sei que nem todos agem dessa maneira. Os caras oferecem mais grana para você entregar um game de saque do que a premiação para o campeão. Muita gente vai entrar nesta”, lamenta.
“Eles sabem escolher em quem farão as propostas. Não vão escolher os meninos mais novos, que estão começando, que só pensam em fazer pontos e subir no ranking. Estão de olho nos jogadores com mais tempo de circuito, que sabem que estão em dificuldade financeira, ou não passam por um bom momento. Tem muito jogador aceitando proposta. Quem entra é difícil sair. O cara faz isso um tempo e depois acaba parando de jogar, tudo perde o sentido. Uma coisa é jogar pelos seus sonhos, suas metas. E outra por dinheiro. Às vezes, vejo jogador entregando set, depois tenta ganhar o jogo e perde. Ou então dois caras indo para a quadra já com toda a partida combinada. O outro dando bola boa para o adversário depois de a bola ter saído. Isso acaba com o tênis”, alerta um técnico que viaja há muitos anos no circuito.
Jogadores recebem propostas para perder games específicos ou então sets. E Mais de R$ 40 mil pode ser oferecido para perder uma partida
Em um certo país, por exemplo, vender jogo virou hábito e já é tratado como algo natural. Uma total banalização de valores. Presenciei técnicos locais fazendo propostas e levando o dinheiro no vestiário após o jogo. Algo repulsivo. Ao treinador, em última instância, cabe a função de educar e passar bons valores. Mas, intermediar um jogo combinado, muitas vezes é mais rentável que um mês de trabalho.
Recentemente, procurei a ITF para fazer algumas denuncias. A entidade criou um departamento para investigar apostas. Há vários jogadores sendo investigados. No entanto, mostraram-me a dificuldade que é obter provas concretas. As conversas e acertos geralmente são feitas pessoalmente ou por telefone. O dinheiro é quase sempre pago em espécie, sem testemunhas, algo impossível de rastrear. A punição para quem é pego, no entanto, é severa: banimento da modalidade. Outra dificuldade que a entidade enfrenta é o medo que alguns têm de denunciar. “Não se sabe o que realmente está por trás disso tudo, e muita gente fica em silêncio”, explica um funcionário da entidade.
O submundo das apostas enxerga oportunidades de corromper e aliciar diante de fragilidades, portanto, os jovens que estão dando seus primeiros passos no circuito, assim como seus técnicos, precisam ficar alertas. Não queremos aqui criar polêmicas baratas e sugerir que o tênis está completamente contaminado, que qualquer um na plateia pode ser um aliciador ou que qualquer resultado estranho é suspeito. Nada disso. Tênis é um jogo e, em um jogo, há muitas possibilidades, viradas espetaculares, derrotas improváveis etc e isso só mostra o quanto o esporte pode ser apaixonante, nada mais.
Além disso, o tênis também é movido por sonhos, tanto dos fãs, mas especialmente dos que estão em quadra atuando. Demora-se pelo menos 10 anos de trabalho duro para um jogador ser competitivo em nível profissional. Por trás de cada tenista que entra em quadra em um Future, há uma década de esforço e dedicação. Existem sonhos e aspirações. E, no final, tudo perde sentido quando já não se joga, não se compete.
Assim, poucas coisas podem ser tão degradantes e tristes quanto entrar nesse esquema. Nele, perde-se tudo, de suas raízes a seus valores. Sai-se da quadra com dinheiro no bolso, mas sem a mínima essência, identidade e dignidade. Isso não poderia expressar maior derrota. Pois não se trata da derrota esportiva, mas de perder-se de si mesmo.