Um assunto que merece um livro
Suzana Silva em 25 de Abril de 2017 às 18:42
Não é nossa pretensão colocar todos os aspectos relativos à garra em um simples artigo que procura orientar pais e professores que compartilham sua paixão pelo tênis com crianças. O livro sobre garra existe (“O poder da paixão e da perseverança”, de Angela Duckworth), foi lançado este ano no Brasil, e é uma leitura ultrarrecomendada. Já este artigo pretende apenas introduzir o assunto e abrir algumas janelas perceptivas.
Quando pensamos em um tenista profissional que esbanja garra, que nome vem em nossa mente? O que você pensa dele? Você pode apenas imaginar a quantidade de esforço despendido por esse atleta para chegar em mais uma bola considerada indefensável. Ou lembrar que a pessoa parece nunca baixar a cabeça durante a partida. Ou ainda perceber que não tem jogo perdido, que até a última bola esse tenista pode virar um placar desfavorável. Ele não desiste até o último ponto. Persiste. Luta. Se esforça no limite.
Amando cada minuto do que faz, agarrando o momento presente. Que bicho é esse? Para ser bem-sucedido em qualquer atividade que empreender, o ser humano precisa desenvolver essa qualidade, que envolve paixão e perseverança: a garra. Como outras qualidades, a garra possui tanto componentes genéticos como ambientais. Em outras palavras, podemos nascer com uma predisposição para termos mais ou menos garra, mas todas as pessoas podem desenvolvê-la plenamente e aprendêla através de estímulos adequados.
E quando falamos que a garra pode ser aprendida e desenvolvida, não estamos falando sobre apenas imitar seu ídolo no tênis cerrando os punhos e falando “Vamooooos!”. O desenvolvimento da garra acontece principalmente de dentro para fora, e algumas atitudes de pais e professores podem estimular que a garra potencial dentro de cada criança e jovem se desenvolva e aflore em seu potencial máximo, como veremos a seguir.
Para alguém chegar a uma paixão na vida adulta, é preciso que seja estimulada a escolher aquilo pelo que se interessa de modo natural. “Antes do trabalho duro vem a brincadeira”, diz Angela Duckworth. E completa: “Antes de as pessoas que ainda precisam descobrir sua paixão estarem prontas para gastar horas e horas todos os dias aprimorando com dedicação suas habilidades, elas precisam experimentar, despertando e reativando interesses. [...]
Nesta primeira fase, contudo, os novatos não se preocupam com o aperfeiçoamento. [...] Mais do que qualquer outra coisa, eles estão se divertindo”. Pais e professores que querem desenvolver a garra em crianças precisam lembrar que as primeiras fases do aprendizado envolvem diversão e emoções positivas. Com as boas memórias afetivas do tênis, elas podem chegar a construir sua paixão e, consequentemente, sua garra.
Diversão nos primeiros anos de aprendizado aumenta a chance do desenvolvimento da garra. Autonomia para o desenvolvimento dos interesses também é importante. Ainda na linha do desenvolvimento da paixão, crianças cujos pais as deixam fazer suas próprias escolhas de acordo com suas preferências têm maior probabilidade de desenvolver interesses que mais tarde sejam identificados com uma paixão.
De acordo com o professor de psicologia Jean Côté, crianças que são direcionadas para uma atividade muito séria e intensa precocemente, pulando a etapa das descobertas e do interesse lúdico e descontraído, podem ter vantagens competitivas inicialmente, mas têm também maior probabilidade de apresentar lesões físicas e estafa no longo prazo.
Claro que os pais e professores inteligentes podem desenvolver o interesse das crianças por determinadas atividades em geral, e pelo tênis em particular, oferecendo estímulos como: livros, revistas, entradas para jogos profissionais, filmes divertidos de tênis etc. Ao mesmo tempo que poder escolher atividades para experimentar é muito positivo, atenção aos limites: se a criança pula de uma atividade para outra antes de experimentar para valer, pode demonstrar falta de foco. Não deixe que ela desista facilmente de qualquer atividade, procure se informar antes com o professor se há algum problema nas aulas. Desenvolva o interesse de seu filho nas atividades que ele escolhe realizar.
Já publicamos, em edições anteriores, artigos sobre talento. Preferimos usar o termo “criança com desenvolvimento motor acima da curva média para a idade” quando identificamos alguém com facilidade para aprender gestos motores, pois o desenvolvimento pleno de um atleta envolve outros componentes de inteligência cognitiva e emocional, além das aptidões fisiológicas.
Então, uma criança com desenvolvimento acima da média para a idade pode ter problemas em desenvolver sua garra, caso seu “talento” seja mais recompensado e elogiado do que seu esforço em melhorar. Quando supervalorizamos o talento, podemos subestimar todo o resto. É como se acreditássemos que o talento apenas fosse o caminho direto para o êxito em alguma tarefa.
Quando assistimos a uma partida profissional, fixamos nossa atenção na perfeição dos movimentos e nos esquecemos completamente do número de horas de repetições e de exercícios que o tenista empreendeu para chegar àquele nível de performance. Mesmo as crianças que apresentam facilidade em aprender uma habilidade chegarão a altos níveis de êxito apenas depois de muito esforço e trabalho para se aperfeiçoarem nessa habilidade e a transformarem em sucesso. Portanto, elogie o esforço.
Para se chegar a qualquer lugar, é preciso primeiro saber aonde se quer chegar. E todo longo caminho é feito passo a passo. Uma criança se compromete com suas tarefas, e persiste para alcançá-las, à medida que sabe aonde vai chegar. Um professor habilidoso possui um bom planejamento do seu curso de tênis, e um bom planejamento de cada exercício que compõe suas aulas, tanto em termos qualitativos (o que quero melhorar) quanto quantitativos (que números preciso atingir nessa habilidade).
A criança que sabe que precisa acertar X voleios no alvo Y, com boa posição de expectativa e transferência de peso, fica mais comprometida e persistente no exercício do que aquela que apenas troca bolas sem objetivos claros do que atingir. Saber que competências precisa adquirir em um dado espaço de tempo, e mais tarde, que metas de ranking quer atingir quando chegar a hora – metas reais e desafiadoras – são fundamentais para o desenvolvimento da garra em crianças. Sendo assim, estabeleça metas de longo, médio e curto prazos.
Uma vez que a criança descobriu o tênis e escolheu praticar a modalidade competitivamente, chegamos à etapa do treinamento propriamente dito, que é a prática disciplinada com metas bem claras a se atingir em determinado tempo, concentração e dedicação totais na modalidade, feedback constante, intensidade máxima, repetição com reflexão e aprimoramento.
E, tão importante quanto a prática, o repouso deve fazer parte do planejamento. Cada atleta possui seu grau ótimo de intensidade e de concentração, mas conforme o nível de performance aumenta, os treinos ficam cada vez mais curtos em duração e mais intensos em empenho. Tendo escolhido o tênis como esporte favorito em seu coração, as horas e horas de prática, viagens e competições podem doer às vezes, mas a criança sabe que vale a pena.
Experiências de laboratório comprovam que nós temos a tendência de não desistir de atingir um objetivo desde que haja esperanças de alcançá-lo. Do modo contrário, caso as dificuldades sejam extremas e as oportunidades de sucesso nulas, o ser humano se deprime e para de buscar seus objetivos. A percepção da competência pessoal para lidar com os desafios é fundamental para o desenvolvimento da garra.
Quando os professores organizam torneios nos quais as crianças jogam com vários adversários diferentes e propõe exercícios desafiadores em aula, que proporcionam algumas experiências de sucesso em crianças, elas se sentem mais capazes de resolver problemas, e, consequentemente, apresentam maiores probabilidades de desenvolver a garra.
A atitude de “não vou desistir de jeito nenhum!” depende muito de algumas pequenas vitórias na infância, vitórias essas que não se resumem ao âmbito esportivo. E por isso também é tão fundamental estimular que elas pensem no que têm aprendido em cada aula e em cada partida jogada, em tudo o que venceram internamente para chegar a um resultado.
Poderão perceber, desse modo, que mesmo numa partida perdida em termos de placar, muitos foram os ganhos de aprendizado. E essa reflexão os motiva a continuar tentando. Se você inscreve sua filha apenas em torneios nos quais ela perde sempre na primeira rodada, atenção, ela pode desistir do tênis para sempre. Procure mesclar com torneios no formato multichances, de modo que ela vença partidas de vez em quando.
O assunto é longo e gera reflexões: que pais forjam melhor a garra em seus filhos, os autoritários ou os compassivos? Como estimular que nossas crianças concentrem sua atenção de modo prolongado em uma área de atividade? Como incentivar para que terminem o que começaram? São discussões necessárias.