A incrível jornada de Marat

Algumas vezes ele foi incrível. Na maioria das vezes, porém, foi hilário. Mas, a verdade é que ele sempre divertiu o público. Aqui analisamos a carreira de mais de uma década de Safin

Tom Perrotta em 11 de Novembro de 2009 às 13:58

SE A MEDIDA DE UM HOMEM é feita a partir das histórias que contam sobre ele, Marat Safin é do tamanho de uma montanha. Há nove anos, o russo, então com 20 anos, não apenas apareceu para o tênis, mas destruiu todas as noções preconcebidas que tínhamos sobre o jogo.

Lá estava o grandalhão se movendo como o mais ágil dos baixinhos. Um lenhador de golpes limpos e suaves que varreu Pete Sampras da quadra na final do US Open de 2000 e não deixou dúvidas de que a era do saque-e-voleio estava acabada. “Ele pode ser o número um por muitos e muitos anos”, disse Sampras. No entanto, Safin queria outra coisa e, nas 13 temporadas que passou procurando essa “coisa”, ele revelou mais de si mesmo – seu charme, sua fúria, seu humor, seu coração, seu mistério – que qualquer outro tenista antes dele. Em homenagem à aposentadoria do russo, aqui estão algumas de suas histórias, contadas pelo próprio Safin e por pessoas que o amaram, o enfrentaram e, de alguma forma, acharam impossível resistir a ele.

JORNADA PARA CLAPTON

Marat Safin está longe de seu auge, jogando mal, e a menos de um mês de defender seu título no US Open, o qual ele vencera após jogar uma final perfeita. “Aquela partida foi como uma volta de 59 tacadas num campo de golfe”, disse Mats Wilander.“Não é algo que vá acontecer mais de uma vez na vida”.

Safin se recusa a acreditar nisso. O sueco, então seu treinador, decide que ele precisa de um tempo. Assim, depois de uma queda precoce em Montreal, os dois se exilam em Sun Valley, em Idaho (Estados Unidos), onde Wilander tem uma casa, nos arredores da cidade de Boise, na qual Eric Clapton fará um show. Eles passam três dias dirigindo no motor-home do sueco, preenchendo o que era pra ter sido uma viagem de três horas com visitas a águas termais. Safin está relaxado, feliz, e longe do tênis. Chega então a hora do show. Passadas algumas músicas, o russo já ouviu demais. Clapton em versão acústica? Coisa chata. O russo não consegue suportar aquilo.

“Sendo ele o jogador e eu o treinador, nós fomos embora”, disse Wilander. “Eu realmente queria assistir o concerto até o fim. Tínhamos ótimos lugares”. Guitarrista e fã de Clapton, o sueco não ficou muito satisfeito com o desânimo de seu comandado, ainda que anos mais tarde ele se lembre carinhosamente do episódio. “Esseé Marat”, diz.

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BAIXANDO AS CALÇAS

Já é fim de tarde em Paris, no Aberto da França de 2004. Safin acerta uma deixadinha vencedora, no quinto set, e abaixa os shorts em celebração. Ele é penalizado em um ponto. “Tentaram estragar a partida”, diria o russo depois. “As pessoas que comandam o esporte não sabem de nada”.

“Só quebrei minha raquete,
só isso. Não é tão perigoso.
Não matei ninguém.”

Em Cincinnati, 2000, depois de
quebrar sua 30ª raquete.

TREINO, TREINO, TREINO

Safin treina em Barcelona, em 2005. Ele não está feliz. Crack! Lá se vai uma raquete. Smash! Lá se vai outra. E mais outra. Peter Lundgren, seu técnico na época, começa a se preocupar. O russo deve jogar em dois dias e lhe restam apenas mais duas raquetes na mala. Crack. Agora só falta uma. “Chamei o empresário dele e disse: ‘temos um problema, ele quebrou todas as suas raquetes’”, diz o treinador. No dia seguinte, Lundgren vai até o aeroporto e pega uma sacola de raquetes com um amigo do empresário, que fora presenteado com algumas das raquetes de Safin e agora se via obrigado a devolvê-las. O amigo imediatamente embarca no voo de volta. “Foi muito irritante quando isso aconteceu, mas agora, depois de tudo, é bem engraçado”, diz Lundgreen. “Ele fica nervoso e não consegue controlar isso. Ele fica muito nervoso. Mas ele é honesto. Você quase sente a raiva por ele quando (Safin) fica tão nervoso. Você o compreende.” Safin perdeu na primeira rodada.

“Vejam. Mesmo os gênios se enganam. Ele estava errado” No US Open, 2007, respondendo à pergunta: “Quando você venceu aqui, Sampras disse que você poderia ter sido número um por quanto tempo quisesse. Você acha que ainda pode chegar no topo?”

PELA ÚLTIMA VEZ

A primeira parada na temporada de despedida de Safin, em 2009, foi a Hopman Cup, na cidade de Perth, na Austrália, onde formou equipe com sua irmã, Dinara Safina. Já no começo, uma surpresa: Safin apareceu com dois olhos roxos, frutos de uma briga em Moscou. O russo não explicou; disse apenas que levou a melhor. Nem mesmo Lundgreen, agora somente um amigo, conhecia a história toda: “Não gostaria de brigar com ele. Só te digo isso.”

Na Hopman Cup, Safin prepara-se para devolver o serviço de Dominik Hrbaty. O saque vai aberto, mas o russo, mostrando bastante elasticidade – para um revés de duas mãos –, estica-se e bate na bola, que viaja e termina atingindo a juíza de cadeira. Safin corre até a rede, desculpase, afaga seus ombros e lhe dá um beijo no rosto.

ACHADO E PERDIDO

“Ele já esqueceu muitas vezes de raquetes e tênis ao chegar aos torneios”, diz Ivan Ljubicic, que conheceu Safin na infância, em uma competição internacional por equipes, e várias vezes treinou com o russo em Monte Carlo, onde ambos vivem. Aconteceu de novo, este ano, quando Safin viajava para disputar pela última vez Wimbledon. Ele chega ao aeroporto e entra no avião. A temporada não corre como o planejado. O russo conta com um retrospecto de derrotas, está entediado com as entrevistas e cansado de falar da aposentadoria. “É um pouco diferente, diferente do que imaginava – é difícil de explicar”, diz. “A sensação que pensei que teria ao disputar os torneios pela última vez (não estou sentindo). Não estou tendo as sensações que esperava ter”. Quando seu avião pousa em Londres, ele sente a falta de algo. “Esqueci no aeroporto”, diz, sorrindo. “Acontece”. Seu equipamento chega no dia seguinte. Safin perde na primeira rodada.

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O ALPINISTA

Para escalar a montanha Cho Oyu no Himalaia (apelidada de “A Deusa Turquesa”), a sexta maior do mundo, você precisa andar devagar. Safin não faz nada devagar. No outono de 2007, seu tênis atinge o fundo do poço, então o russo embarca rumo ao Nepal. Dmitry Tursunov, que conheceu alguns dos amigos escaladores de Safin, dá boas risadas da aventura do compatriota. “Marat saiu correndo montanha acima e quase morreu. A morte o espreitava. Não havia oxigênio”, diz Tursunov. “Ele achou que estava no quinto set de um Grand Slam e se apoiava na mochila. ‘Sim, vou conquistar a montanha’, repetia Safin, enquanto os outros andavam bem devagar, dizendo: ‘olha esse idiota’. A jornada deveria durar um mês, mas Safin desceu após dez dias. “Ficávamos só imaginando o que estava acontecendo”, diz Tursunov, referindo-se aos parceiros de escalada de Safin. “Alguém teria que ter ido junto com ele, porque não há a mínima chance que ele passe um mês sem sexo”.

Safin não entende o porquê de tanto alvoroço a respeito de sua viagem. “É engraçado que as pessoas prestem tanta atenção nisso”, diz ele. “Não fui para o espaço. Comprei uma passagem, fui para o Himalaia e me diverti com meus amigos, é isso. Nunca pensei que isso iria gerar tanto alvoroço – com as pessoas dizendo: ‘Oh, você foi para o Himalaia?’ Sim, é só comprar uma passagem – ela custa US$ 600–, colocar a bunda na poltrona do avião, que você também vai pra lá”. “Não acho que ele curte os holofotes tanto quanto outras pessoas”, diz Tursunov.

UM OLHAR MAIS ATENTO

É verão em Cincinnati, três ou quatro anos atrás. A data e a rodada exata são desconhecidas, mas um veterano árbitro, que pede para não ser identificado, lembra detalhes. Safin está na quadra e Carlos Bernardes na cadeira. O russo contesta uma chamada, ele acredita que a bola foi fora. Ele encontra a marca e traça a distância entre a bola e marca com seu dedo do meio, e, então, ergue a mão e mostra o dedo do meio para Bernardes. “A bola foi isso fora”, diz, raivosamente.

“Mostrar o dedo do meio para o árbitro de cadeira, normalmente provoca a chamada do supervisor do torneio em quadra e, talvez, uma desclassificação”, diz o veterano juiz. “(Mas) ele fez isso de maneira engraçada.” O russo ganha uma advertência. Seria Safin um pesadelo para os juízes de cadeira? “Ele é muito exigente, mas é um cara justo. Ele nunca iria circular a marca errada, nunca trapacearia. É difícil encontrar pessoas tão honestas”.

“Não gosto de nenhum esporte. Por exemplo, não jogaria futebol. Não jogaria hockey. Basquete eu odeio. Nunca assisto nenhum jogo na tevê. É incrível, e sou um tenista”, Cincinnati, 2009.

PEGUE A ESQUERDA

Bem vindo a Melbourne, palco de algumas das maiores lembranças de Safin. Os motoristas do torneio o conhecem bem. Às vezes ele pede ajuda para eles. “Com licença, você pode virar aqui?”, o condutor recorda de ter ouvido o russo dizer. Safin avistara uma mulher que ele conhecera e não fazia questão de encontrar novamente numa rua próxima. O motorista o leva de volta para o hotel.

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REDENÇÃO

“Todo mundo acha que ele é muito preguiçoso”, diz Ljubicic. “Mas afirmo que quando ele quer fazer algo, ele faz”. O croata se recorda de Safin no outono de 2004. “Corridas, bolas medicinais, pesos – ele ficava no clube o dia inteiro.” “Era importante para o meu ego”, diz o russo, com firmeza. Ele tinha que vencer mais um Major para provar para si mesmo que podia. Seria Marat Safin um tenista sempre aquém das expectativas? Wilander diz que isso é bobagem: “Quando se é tão emocional em quadra, não se faz menos do que esperam de você”. Safin admite que o título do US Open em 2000 se tornou um obstáculo. “Eu pensava algo como: ‘Fim de jogo. Consegui tudo o que queria. O que vem agora? ‘’’, diz o russo. “Não havia uma pessoa de verdade que pudesse me guiar. Eu era muito teimoso.”

Em janeiro de 2005, eis outra chance. Uma semifinal de Aberto da Austrália diante de Roger Federer, o atual campeão e o homem que se tornara tudo o que Marat Safin poderia ter sido. Lundgren treinou os dois e descreve a diferença entre eles. “Marat gosta demais de outras coisas”, diz o técnico. “Ele gosta de tênis, mas ele não vive intensamente o esporte como Roger”.

Nessa noite, contudo, ele viveu. No tiebreak do quarto set, Federer tem um matchpoint. O suíço se estica e executa um voleio curto. Safin corre em direção à linha de saque e acerta a bola antes que ele a quique pela segunda vez, e faz um lob sobre Federer, que se recupera e tenta uma jogada mágica, um winner batendo na bola entre as pernas. A bola morre na rede. Eles jogam ainda mais 16 games, mas Federer cai, literalmente, no match-point, após uma tentativa desajeitada de devolver uma bomba desferida pelo revés do russo. Ao fim, 5/7, 6/4, 5/7, 7/6 (6) e 9/7. Safin não comemora. Apenas caminha, manquitolando, em direção à rede, com os ombros baixos. “Ainda acho que essa foi a maior partida de tênis que já assisti”, diz Wilander. O que poucos homens fizeram uma vez, Safin fez duas. A “volta de 59 tacadas” se repetiu. Ele fará falta.

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