Questão de vida ou morte

Como e por que as rivalidades influenciam o esporte, modificam para melhor o jogo e, sobretudo, nunca são esquecidas


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"TÊNIS É DAR PORRADA. Todo jogador, mais cedo ou mais tarde, se compara a um boxeador, porque tênis é pugilismo sem contato. É violento, mano a mano. E a escolha é tão brutalmente simples como em qualquer ringue. É matar ou morrer". Assim Andre Agassi define o esporte que o consagrou.

Tais palavras, publicadas em sua autobiografia, ajudam a explicar por que no tênis, mais do que na maioria dos esportes, as rivalidades são tão intensas. Num esporte individual, de "matar ou morrer", a tensão entre dois jogadores é mais suscetível, e os antagonismos entre estrelas não apenas atrai público, como impõe transições e evoluções dentro da modalidade.

Não importa o palco, a cidade e os espectadores. Em Wimbledon, Flushing Meadows, Roland Garros, num torneio ATP ou em meras exibições. Tanto faz. De repente, as atenções se voltam todas para a quadra, para dois jogadores, que sozinhos parecem significar todo o esporte, eclipsando o restante dos atletas. Tudo se resume àqueles minutos. É o momento de glória, quando o tênis, mais que um jogo, se torna uma questão de honra. É quando a rivalidade entra em campo. "É algo especial quando eu e John (McEnroe) jogamos. Sinto isso e John sente também. É uma ótima atmosfera", admitiu Bjorn Borg, logo após voltar a enfrentar seu maior adversário, em partida de exibição, em maio de 2010, passadas já três décadas de seus grandes duelos. A magia permanecia.

As rivalidades atraem o público. As pessoas, como no antigo Coliseu, estão sempre sedentas por "ver sangue", especialmente quando acham que disputas esportivas podem se tornar questões pessoais e transformar esses grandes duelos em embates mais humanos. Mas não é só isso. As rivalidades proporcionam mais que meras birras. A dicotomia de estilos e personalidades de dois tenistas tem, geralmente, papel fundamental no esporte. Grandes estrelas modificam a forma de enxergar o jogo, e as rivalidades potencializam o poder de influência desses ícones.

Dicotomias

A oposição entre estilos, dentro e fora de quadra, costuma dividir a audiência entre os seguidores de duas vertentes. Nos anos 1970 e 1980, por exemplo, no auge de Bjorn Borg e John McEnroe, as partidas entre os dois eram também choques entre maneiras de enxergar o tênis. McEnroe, seguindo sua personalidade, era agressivo em quadra, voleava com ímpeto, às vezes correndo, sempre indo à frente; enquanto o sueco praticava um tênis completo, técnico e baseado no fundo da quadra. McEnroe era temperamental e explosivo, como um típico ianque; Borg frio e implacável. Isso sem falar que o sueco era destro e batia o backhand com duas mãos, enquanto o norte-americano, canhoto, executava o golpe com apenas uma. Em resumo, eles eram diferentes em quase tudo, fator que tempera ainda mais qualquer rivalidade.

fotos: Ron C. Angle/TPL

AGASSI X SAMPRAS
Retrospecto: 14 x 20
Títulos de Grand Slam: 8 x 14
Confrontos em Grand Slam: 3 x 6
Finais de Grand Slam: 1 x 4
Títulos: 60 x 64
Premiação: US$ 31,152,975 x US$ 43,280,489
Backhand: Duas mãos x Uma mão

NADAL X FEDERER
Retrospecto: 14 x 7
Títulos de Grand Slam: 9 x 16
Confrontos em Grand Slam: 5 x 2
Finais de Grand Slam: 6 x 2
Títulos: 43 x 63
Premiação: US$ 34,936,162 x US$ 57,741,704
Backhand: Duas mãos x Uma mão

A rivalidade de Borg e McEnroe marcou época no esporte e influenciou gerações futuras. O sueco, por exemplo, foi um dos primeiros a bater consistentemente tanto a esquerda quanto a direita com muito topspin, característica marcante no jogo de inúmeros tenistas mais novos. Mas não é só isso, essas rivalidades delimitam as feições do esporte em uma determinada época; nos anos 1970, por exemplo, tênis foi tido como um meio de homens carismáticos e cheios de personalidade, de cidadãos do mundo. O comportamento em quadra dos rivais McEnroe e Borg tem papel fundamental nessa visão.

Rivalidade não é (necessariamente) inimizade

Coincidência ou não, grandes rivalidades geralmente extrapolam as quadras. Na maioria dos casos, o antagonismo se estende à personalidade dos rivais. Seja pela utilização mercadológica da imagem dos atletas, seja por suas maneiras de viver simplesmente distintas, grandes rivalidades comumente se transformam em choque de "Ways of Life".

Uma das rivalidades que mais seguiu essa receita foi a entre Chris Evert e Martina Navratilova. Nunca houve duas tenistas tão diferentes em tantos detalhes, mas tão igualmente competentes. A norteamericana Evert e a tcheca Navratilova protagonizaram a maior rivalidade em todos os tempos no circuito feminino. Loira de olhos azuis e corpo esbelto, Evert era a imagem da feminilidade e, por muitos anos, ocupou o disputado posto de namoradinha da América. Navratilova, por seu lado, vinha do Leste Europeu, era forte, masculinizada e homossexual assumida. Assim, as duas alimentaram um "tênis esquizofrênico", de dupla personalidade.

Quem olhava Evert, via um universo de musas; quem reparava em Navratilova, via um "homem de saias". Quem, porém, olhava para a quadra, via duas tenistas igualmente espetaculares, uma agressiva, outra extremamente consistente. Hoje, vê-se duas amigas, Navratilova, rainha de Wimbledon (nove títulos), Evert, majestade em Roland Garros (sete títulos). Indissociáveis, como se fossem uma só, a ponto de os mais maldosos brincarem que Navratilova seria o quarto marido de Evert. Ao que a musa de meia idade costuma responder, risonhamente: "Se não aconteceu até agora, nunca vai acontecer".

Rivalidades entre Federer e Nadal e Sampras e Agassi
ditaram os rumos do tênis nos últimos anos

Males que vem para bem

Rivais impõem a seus rivais as maiores e mais duras derrotas, e são, consequentemente, também diante destes inimigos íntimos que surgem os maiores triunfos. Mas, mais que grandes pedras no caminho, os rivais acabam por aperfeiçoar uns aos outros.

"Não existe rival para esse homem", dizia-se sobre Roger Federer em seus primeiros dias de domínio, até que surgiu Rafael Nadal. Primeiro, um adversário à altura no saibro, depois, na grama e na quadra dura. A excelência do jogo do suíço fez seu principal adversário evoluir em todos os fundamentos. Saque, voleio, movimentação, ataque etc. Não fosse Federer, talvez o nome do espanhol ficasse lembrado "apenas" como mais um grande contra-atacador.

Ron C. Angle/TPL

EVERT X NAVRATILOVA
Retrospecto: 37 x 43
Títulos de Grand Slam: 18 x 18
Confrontos em Grand Slam: 8 x 14
Finais de Grand Slam: 3 x 10
Títulos: 154 x 167
Premiação: US$ 8,287,186 x US$21,626,089
Backhand: Uma mão x Duas mãos

Federer, por sua vez, ao encontrar em Nadal um outrora inimaginável algoz, viu-se forçado a lapidar mais ainda o que parecia já um jogo sem falhas. "Federer é o melhor do mundo, de longe. E, para mim, Nadal o transforma em um juvenil quando jogam. Não sei ao certo o porquê disso. Sei que o jogo é uma combinação muito ruim para Federer e muito boa para Nadal.

Se Nadal não tivesse surgido, não teríamos visto o melhor Federer. Acho que, porque Nadal está aí, vamos ver o melhor tenista de todos os tempos. Acho que, para o Federer, a presença do Nadal é muito bem-vinda (risos), mesmo perdendo para ele", disse Mats Wilander em 2006.

"Talvez ele tenha que adicionar algo a seu jogo para derrotar Nadal", chegou a comentar Pete Sampras. E o norteamericano sabia bem o que falava. Poucos utilizaram tão bem as armas do rival em favor próprio. "Foi bom para mim quando Andre (Agassi) começou a me superar", disse ele. "Passei a usar elementos do jogo que não eram exigidos contra outros jogadores. Diante de Andre, tinha que sacar e volear no segundo serviço". Agassi, por sua vez, teve que ajustar seu timing, aperfeiçoar sua agressividade para fazer frente à Sampras, ainda que ele, rabugento, não admita. "Ele diz que comigo joga seu melhor tênis, eu acho que, em mim, ele desperta meu pior desempenho", afirma Agassi, em sua autobiografia. Chatices à parte, talvez não seja coincidência que o um dos maiores devolvedores de todos os tempos (Agassi) seja contemporâneo de um dos maiores sacadores.

"É tudo diversão. Até que alguém se machuque"

"Hei! Você está levando isso para o lado pessoal", exclama Sampras, atônito com atitude de seu eterno rival, Agassi, que acabara de exibir os bolsos vazios do shorts, provocando-o e aludindo à fama de pão duro de Sampras que o próprio Agassi propagara em sua controvertida autobiografi a. Como não bastasse cutucada por escrito, Agassi fez questão de atiçar o "amigo" em público.

Estilos de eternos rivais são contrapostos tanto dentro quanto fora das quadras

À provocação em quadra, Sampras respondeu com um saque violento e descaradamente direcionado ao corpo do rival, posicionado em sua paralela. O episódio foi considerado uma vergonha para o esporte, um papelão, no mínimo; tratava-se de um jogo amistoso para arrecadar fundos para as vítimas do terremoto no Haiti, no começo de 2010. Era um encontro com fins nobres, mas a rivalidade falou mais alto. Os dois - homens milionários e consagrados - se comportaram como irmãos birrentos brincando no quintal de casa e roubando a cena para si. Também presentes à quadra, Rafael Nadal e Roger Federer apenas assistiam à briga, como dois coadjuvantes. "Isso está ficando intenso", comentou Federer, um tanto constrangido, antes de Agassi vaticinar: "É tudo brincadeira e diversão. Até que alguém se machuque". Foi tudo amistoso, até a rivalidade entrar em campo. Mesmo aposentado, mesmo em evento beneficente, Andre Agassi bem sabe, quando vê Pete Sampras à sua frente, "mano a mano", seu instinto lhe diz: "É matar ou morrer".

Ron C. Angle/TPL

BORG X MCENROE
Retrospecto: 7 x 7
Títulos de Grand Slam: 11 x 7
Confrontos em Grand Slam: 1 x 3
Finais de Grand Slam: 1 x 3
Títulos: 64 X 77
Premiação: US$3,655,751 x US$12,552,132
Backhand: Duas mãos x Uma mão

O Tênis dividido

Muito se diz da diferença entre canhotos e destros. Alguns dizem que o os "sinistros" costumam ser mais intuitivos, enquanto os destros, mais racionais. Talvez seja apenas coincidência, mas é interessante notar que, no esporte, mais do que jogar com uma das mãos, o fato de ser destro ou canhoto tende a definir personalidades e estilos de jogo. Interessante notar que algumas das maiores rivalidades da história do tênis se deram entre canhotos e destros. Mais do que isso, entre estilos decorrentes do fato de os jogadores empunharem a raquete com a mão direita ou esquerda. Os destros, Borg e Evert, por exemplo, possuíam um estilo bastante semelhante, optando pelo fundo de quadra, pelo topspin, pelo contra-ataque, com um backhand de duas mãos magistral. Seus "opostos", McEnroe e Navrati lova, dois canhotos, adeptos do saque-e-voleio, do jogo plástico e agressivo, do eclético backhand com uma mão. Durante os anos 70 e 80, eles definiram a tendência. Definiram o tênis.

Nos anos 90, Agassi e Sampras, dois destros, surgiram. Mas, mesmo usando a mesma mão para golpear a bola, cada um tinha seu estilo. Um atacando, outro contraatacando. E como Borg e McEnroe, suas personalidades também se contrapunham, numa época em que a busca pela identidade falava ainda mais alto. Sampras era o bom moço. Agassi, o rebelde.

Nos anos 2000, parecia que Federer, enfim, seria o ponto de união. Jogo completo, esti lo plástico, ataque e defesa perfeitos, o tenista ideal, o junção de tudo o que de melhor existiu. Um deus. No entanto, como em todas as histórias, ele precisa de um "vilão". Nadal, canhoto, de esti lo aguerrido, brigador, raçudo, incansável, determinado, surgiu para mostrar que havia um novo caminho e que o tênis talvez nunca será um esporte de uma única maneira de jogar.

Felipe De Queiroz

Publicado em 17 de Novembro de 2010 às 12:05


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Artigo publicado nesta revista