A bela e a fera

Roland Garros 2012 teve muito mais do que a redenção de Maria Sharapova e o recorde de Rafael Nadal. Teve até juvenil brasileira na final


PARIS É UMA CIDADE HISTÓRICA, repleta de monumentos que contam histórias de grandes heróis. Assim também é o clima em Roland Garros. Contudo, o termo "primeira vez" talvez nunca tenha sido tão usado quanto nesta edição.

A começar por Rafael Nadal. Favorito desde o primeiro minuto, ele provou que é o maior campeão de todos os tempos no saibro francês com o sétimo título, superando a marca (antes considerada inalcançável) do lendário Bjorn Borg. E isso novamente, numa decisão contra o rival Novak Djokovic - pelo quarto Grand Slam consecutivo (fato inédito no tênis). Esta também foi a primeira vez de Nole na última fase em Paris. E, até mesmo a final, prejudicada pela incessante chuva nada charmosa nos ares parisienses, foi uma exceção - a segunda-feira, tão rotineira no US Open há quatro temporadas, marcou o desfecho da competição pela primeira vez desde que o romeno Ilie Nastase faturou a inédita coroa dos Mosqueteiros em 1973.

Entre as damas, houve também muita história "nova" para contar. A russa Maria Sharapova consolidou sua volta por cima na carreira justamente onde menos se esperava algo dela (antes desta temporada!). Impecável ao longo de toda a gira europeia na superfície - três títulos em quatro eventos disputados -, a musa perdeu apenas um set ao longo da competição e desbancou a guerreira Sara Errani, que surpreendeu a todos (inclusive a ela mesma) com sua campanha até a decisão.

Se o Brasil não encantou nas simples, as duplas foram o diferencial nesta edição. Além da boa campanha de Marcelo Melo, que alcançou as quartas no seu primeiro Major ao lado do croata Ivan Dodig, a modalidade também proporcionou grandes alegrias aos novatos. Larri Passos que o diga. Quinze anos após ver Gustavo Kuerten sagrar-se campeão pela primeira vez na capital francesa, o gaúcho quase sentiu o gostinho de ver um dos seus "novos" comandados levantar o caneco.

A jovem Beatriz Haddad Maia, junto com a paraguaia Montserrat Gonzalez, tornou-se a primeira juvenil brasileira a chegar à final de um torneio deste porte, logo onde jogou seu primeiro Grand Slam no júnior - com apenas 15 anos, em 2011. De quebra, a paulistana, agora com 16, contou-nos que seu objetivo é de primeira linha. "Quero ser melhor do mundo não no juvenil, mas no profissional".

Enfim, em 2012, Paris parece que reescreveu as poucas páginas em branco do livro dos recordes. Foi por esses motivos que a Revista TÊNIS esteve presente durante 23 dias acompanhando o desenrolar de mais um dos capítulos inéditos da história. Eu, como repórter, não tive dúvidas em arriscar minha primeira cobertura de um Grand Slam, afinal, tive o privilégio de ver as linhas serem preenchidas diante dos meus olhos.

ARTISTA

Desde o início, ele procurou despistar o foco de qualquer possibilidade de quebrar paradigmas. Perguntado se estaria preocupado em ver Bjorn Borg na arquibancada em um possível dia histórico para o tênis, preferiu manter a humildade: "Primeiro preciso estar na final, não?" Jogo a jogo foi sua filosofia em Paris, como se jogasse pela primeira vez naquele saibro. E, como naquele inédito 2005, Nadal foi soberano. Ponto a ponto. Game a game. Até a decisão, só perdeu uma vez o seu saque. Sete adversários. Sete obstáculos. Em 14 dias, o espanhol mostrou ao mundo toda a engenhosidade de sua obra-prima. Ao lado do tio Toni, Rafa encontrou consistência e agilidade únicas para jogar um tênis quase imbatível nas superfícies mais lentas. Antes de chegar à França, havia levado o octa em Monte Carlo (primeiro tenista a vencer um evento por oito vezes), o hexa em Roma e o heptacampeonato de Barcelona.
Ao longo de toda a carreira, foram 254 vitórias e apenas 19 reveses no piso, acarretando um total de 36 títulos. Aproveitamento assustador de 93%. Em Roland Garros, sua força mental considerada por muitos a melhor da história derrubou nada menos do que 52 rivais no chão empoeirado da capital francesa.
Afinal, Nadal é o melhor jogador da história no saibro? Se fazer esse julgamento é ainda injusto, os números estão aí. Talvez a pergunta apropriada para um atleta de tal currículo seja: há algo mais que ele precise provar no saibro? Borg não esteve nas tribunas, tampouco houve alguém suficiente para impedi-lo de manter a escrita. Assim como no conto de fadas "A Bela e a Fera", a "fera" trouxe sensibilidade única para reinar na bela Paris como ninguém. Um casamento perfeito entre o homem e sua terra

ABSOLUTA

Com 17 anos, a grama sagrada de Wimbledon foi apoio para seus delicados joelhos de ainda menina. Dois anos mais tarde, foi a vez do cimento do US Open e, duas temporadas depois, viria o piso emborrachado do Aberto da Austrália. Três títulos de Grand Slam, carreira de modelo garantida caso viesse uma precoce aposentadoria ( nos moldes de Kournikova, talvez), topo do ranking. Para muitas, a carreira já estaria perfeita. Não para Maria Sharapova.
Quando muitos anunciavam seu fim após seguidas duplas-faltas nos jogos, resultado da perda de confiança com o saque prejudicado por uma cirurgia no ombro em 2008, a russa foi desafiada a mostrar o seu melhor. E, com a humildade de seguir lutando - o que a torna ainda mais admirável aos olhos do público, "Masha" fez o que é de seu costume: venceu. Até no lugar em que chegou a se nomear "vaca no gelo".
Parece que a vaca se transformou na fera da determinação, do desejo, da obsessão de ser a melhor. E coube aos deuses do esporte recitarem o grand finale no cenário mais impensável à Maria. O saibro virou quintal para Sharapova. Paris foi testemunha da evolução da loira, que surpreendeu com a popular agressividade, mas com uma dose primordial de intensidade.
Em um lugar onde não há dinastias, Sharapova chocou a todos com seu reinado em terras francesas apenas um set perdido em toda sua trajetória. De quebra, tornou-se o que é perita na modalidade a russa voltou a liderar o topo da tabela e o caneco em Paris a colocou como a décima tenista da história a completar o Career Grand Slam. Satisfeita? Maria está longe disso. Paris também, afinal jogar tênis na Cidade-Luz nunca foi tão belo.

 

EVOLUÇÃO

Em Paris, Djokovic sentiu de perto o que Federer (por duas vezes) e Nadal passaram há alguns anos a chance de fechar o ciclo perfeito em quatro Grand Slams seguidos. O sérvio pareceu não levar bem a pressão que a lenda John McEnroe insistiu em apontar no jogo ao longo do torneio.
Nas oitavas, veio o italiano Seppi e a virada na marra em cinco sets. Em seguida, foram quatro match-points a favor de Tsonga e uma Philippe Chatrier poucas vezes em transe para ver uma zebra tão de perto. O sangue frio apareceu para Nole sair pela porta da frente e continuou para saborear sua "vingança" contra o carrasco Roger Federer, que o havia imposto a primeira derrota de 2011 exatamente na penúltima fase na França. Porém, não foi suficiente para domar a fera de Manacor.
O sérvio chegou à decisão realmente precisando mostrar um nível muito maior do que havia apresentado. Conseguiu. O resultado não veio. Paciência! Nadal não venceu Federer na primeira vez que jogaram na grama. O que Djokovic tem consciência é de que ousou igualar-se ao dono da propriedade. E algumas derrotas não estão fora dos planos, mas a persistência é um passo importante para uma conquista futura em Porte d'Auteuil.

MÁFIA EM ALTA

Por mais que o país tenha demonstrado grande poder de decisão nas últimas duas finais por ali, a Itália não tinha em Sara Errani a maior força para mais uma bela caminhada em Paris. Porém, a aguerrida jogadora de 25 anos superou as adversidades e foi batendo uma campeã de cada vez no saibro francês.
Primeiro foi a bela Ana Ivanovic, campeã na França em 2008, seguida da perigosa Svetlana Kuznetsova, vencedora há três anos. Além dos italianos que só tiveram o trabalho de atravessar a fronteira para acompanhar sua ragazza, até Martina Navratilova impressionava-se com o desempenho de Errani, principalmente após o triunfo contra Samantha Stosur, dona atual do título no US Open.
É verdade que pouco pôde fazer contra a gigante Sharapova na final, mas seu papel já havia sido cumprido à risca. Um dia antes, levou a coroa nas duplas jogando com a compatriota Roberta Vinci. Na semana seguinte, entrou pela primeira vez no top 10 da WTA. A agilidade e a garra foram marcas deixadas no saibro pela baixinha de modestos 1,65m que, com certeza, encheram de orgulho sua terra natal.

DECEPÇÕES

Se Roland Garros reservou momentos positivos para vários personagens, outros se contentaram em sair pela porta dos fundos. A começar por Serena Williams, campeã do torneio em 2002 e que vinha de uma sequência de 17 jogos sem perder no piso. O favoritismo caiu logo na estreia diante da local Virginie Razzano um choque para quem nunca tinha perdido em uma primeira rodada em seus 46 Grand Slams anteriores.
Por sua vez, Azarenka falhou na hora que o mundo passou a acompanhar de perto seus golpes pesados da base que a levaram à glória na Austrália. Mas, desde a primeira vista, "Vika" já não teria motivos para lembrar da edição em Paris - a começar pelo quase pesadelo na rodada inicial diante de Alberta Brianti (esteve atrás por 7/6 e 4/0); e, por fim, no revés "de matar" (palavras da própria bielorrussa) frente à Dominika Cibulkova nas oitavas.
Já Federer se rendeu ao cansaço. Muitas vezes pareceu ter chegado à França sem o melhor de sua condição física. Mas baleado ou não, o suíço esteve longe de repetir as belíssimas atuações do ano passado - principalmente contra Djokovic na semifinal e se deu ao luxo de perder sets para os fãs Adrian Ungur, David Goffin e esteve nas cordas contra Del Potro nas quartas. Porém, nem a recuperação foi um incentivo para colocá-lo no nível dos dois à sua frente no ranking.

LIÇÕES

"Foi à pior derrota da minha carreira". Era difícil imaginar de outra forma. Jo-Wilfried Tsonga levou, por cinco partidas, o peso de um país sedento por títulos dentro de seus domínios. No entanto, comoveu a todos os compatriotas com o sincero choro após o revés para Djokovic nas quartas. Foi, naquela contradição de sentimentos, seu melhor resultado em Paris e louvável também a postura de "leão" (como disse que se comportaria contra o sérvio) dentro da quadra. Se não igualou ainda o feito de Yannick Noah na capital ou talvez nem consiga pela hegemonia do pelotão dianteiro, Tsonga parece não estar tão longe de quebrar a barreira do top 4 e é um dos poucos que têm o privilégio de desafiar os protagonistas da festa. Quem sabe, não é o início de uma reviravolta caseira na França. Allez, Jo!

NÃO RENDEU

Com a pressão de defender os 90 pontos da terceira rodada do ano passado para garantir sua vaga nas Olimpíadas de Londres, Thomaz Bellucci entrou, de muitas formas, pressionado a obter um resultado satisfatório em Paris. A instabilidade, tão presente em 2012, voltou a falar mais alto para o pupilo de Daniel Orsanic e Bellucci se despediu logo na primeira rodada contra o sérvio Viktor Troicki. "Tem sido uma temporada muito ruim", admitiu o próprio jogador, que ficou de fora da lista oficial dos classificados para os Jogos da Inglaterra. Sem ranking suficiente, o canhoto terá que torcer por desistências da chave ou entrar graças a um convite já encaminhado pela Confederação Brasileira de Tênis (CBT). Outros jogadores nacionais que representaram o País no segundo Grand Slam do ano foram os paulistas João Olavo Souza, o Feijão, e Rogério Dutra Silva. Ambos marcaram suas estreias em Paris, porém não passaram do primeiro adversário - Feijão abandonou o jogo contra o alemão Cedrik Marcel-Stebe ainda no segundo set após sentir uma contusão nas costas e Rogerinho, que passou o torneio qualificatório, parou no poderoso serviço do norte-americano John Isner, 11º do mundo.

 

A BOLA DA VEZ!

Se no individual o bom desempenho não apareceu, felizmente não se pode dizer o mesmo nas duplas. Mesmo sem um parceiro fixo estipulado para a temporada, o mineiro Marcelo Melo encontrou um belo entrosamento com o croata Ivan Dodig. Após começarem os trabalhos, sem expectativas, no ATP 500 de Memphis e alcançarem a decisão por lá, os dois renovaram a parceria em Paris e não decepcionaram. Com direito a vitória sobre a parceria Jurgen Melzer/Philipp Petzschner, atual campeã do US Open, nas oitavas, Melo e Dodig acabaram superados pela inspirada dupla italiana formada por Daniele Bracciali/Potito Starace nas quartas. Por sua vez, o ex-parceiro de Melo, Bruno Soares, jogou seu último evento ao lado do norte-americano Eric Butorac. O time conquistou dois triunfos antes de cair na fase de oitavas para o australiano Matthew Ebden e o norte-americano Ryan Harrison. O titulo no Brasil Open, em fevereiro, parecia ser um sinal de sucesso entre Soares e Butorac, porém os maus resultados ao longo do ano fizeram com que cada um seguisse seu caminho. Depois de Wimbledon, o tenista de Belo Horizonte jogará com o austríaco Alexander Peya, que anteriormente atuou ao lado do compatriota Oliver Marach. O melhor resultado para o Brasil em Roland Garros fez com que Melo enfatizasse ainda mais a importância das duplas para o tênis nacional na atualidade. "A gente está sempre fazendo bons resultados. No Brasil Open, o Bruno [Soares] ganhou, eu estava na final de Memphis. Três representantes [Marcelo, Bruno e André Sá] no top 50 de uma modalidade não é para qualquer país", declarou o gigante de 2,03m, lembrando que a dupla pode ser a única opção brasileira a se garantir em Londres diretamente pelo ranking. "No momento só a dupla pode garantir o Brasil nas Olimpíadas. Quanto mais resultados fizermos, melhor ainda para compreender o quanto é fundamental as duplas para o País", encerrou Melo, hoje o melhor tenista brasileiro no ranking da ATP com o 27º lugar. Bruno aparece em 29º, seguido de Sá em 46º.

SIMPLES

Rafael Nadal (ESP) v. Novak Djokovic (SRB)
6/4, 6/3, 2/6 e 7/5

Maria Sharapova (RUS) v. Sara Errani (ITA)
6/3 e 6/2

DUPLAS

Max Mirnyi (BLR) / Daniel Nestor (CAN) v. Bob Bryan (EUA) / Mike Bryan (EUA) 6/4 e 6/4

Sara Errani (ITA) / Roberta Vinci (ITA) v. Maria Kirilenko (RUS) / Nadia Petrova (RUS)
4/6, 6/4 e 6/2

Sania Mirza (IND) / Mahesh Bhupathi (IND) v. Klaudia Jans-Ignacik (POL) / Santi ago Gonzalez (MEX)
7/6(3) e 6/1

JUVENIL

Kimmer Coppejans (BEL) v. Filip Peliwo (CAN)
6/1 e 6/4

Annika Beck (ALE) v. Anna Schmiedlova (SVK)
3/6, 7/5 e 6/3

Andrew Harris (AUS) / Nick Kyrgios (AUS) v. Adam Pavlasek (RTC) / Vaclav Safranek (RTC)
6/4, 2/6 e 10/7

Daria Gavrilova (RUS) / Irina Khromacheva (RUS) v. Montserrat Gonzalez (PAR) / Beatriz Haddad Maia (BRA)
4/6, 6/4 e 10/8

Matheus Martins Fontes

Publicado em 22 de Junho de 2012 às 07:21


Torneio

Artigo publicado nesta revista

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Revista TÊNIS 105 · Julho/2012 · A redenção de Maria

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